Para quem foi um adolescente do interior que começou a ler muito cedo,a descoberta da dupla Simone de Beauvoir/Sartre foi uma revelação.Revelação que existia mesmo um outro mundo,onde as pessoas tentavam viver plenamente,sem os entraves sufocantes do moralismo bem-pensante.E ler as memórias de Simone de Beauvoir,nos já velhos e muito manuseados volumes da Difusão Européia do livro,publicados no início dos anos 60(ainda os tenho),foi um exercício inesquecível..
Quase todo mundo conhece a estória.Criada na reacionária alta burguesia francesa do início do século XX,Simone desde cedo soube traçar seus caminhos meticulosamente,enfrentando todos os (muitos)obstáculos com os quais se deparou.Ávida leitora desde muito pequena,saboreou toda a literatura francesa e inglesa dos séculos XIX e do início do século XX.Na adolescência tomou como guia literário a grande escritora inglesa George Eliot(pseudônimo de Mary Ann Evans-1819-1881),depois da leitura do "Moinho sobre o Floss"(The mill on the floss).
Depois da primeira guerra mundial,seu pai,que havia investido a fortuna da família em ações das
ferrovias russas,faliu com o advento da revolução de 1917.Sem dinheiro e amargurado,Georges de Beauvoir disse às duas filhas:-'Vocês agora não têm mais dote,vão ter que trabalhar para ganhar a vida'.O que para a maioria das jovens mulheres da época seria desastroso,para Simone foi uma libertação.Decidiu-se finalmente:seria professora de filosofia.
Em 1929,através do amigo comum René Maheu,conheceu Sartre,que seria seu companheiro constante pelos 51 anos seguintes.Em seguida passou em segundo lugar na 'agregation' de filosofia da 'École Normale Superieur'(onde 90% dos candidatos eram reprovados pelo rigor das provas escritas e orais),atrás apenas do próprio Sartre.Isso,numa época em que contavam-se nos dedos as mulheres que estudavam filosofia.
A partir daí,sua vida realmente começou(como ela própria disse).Deixou a casa dos pais e passou a morar em hotéis,fato absolutamente incomum para uma 'moça de família' da época.
O que vem a seguir está minuciosamente relatado no segundo volume de suas memórias('A força da idade').Os anos(1929-1944) de sua juventude e de sua grande aventura com Sartre são narrados com grande riqueza de detalhes.Não é meu propósito contar as anedotas dessa vida em grande estilo,mas procurar as lacunas entre os fatos e os mitos da vida de Simone de Beauvoir.
A prosa de Simone envolve totalmente o leitor(também estou entre os que acham suas memórias melhores que os romances).A riqueza de detalhes,o clima da narração que nos faz literalmente viajar pelo texto,a descrição exuberante de pessoas(muitas delas personagens famosas da literatura e das artes),de lugares,o perfeito encadeamento entre forma e conteúdo,enfim,a maestria de seu estilo narrativo é ímpar.
Até a morte de Simone em 1986,a imagem da revolucionária de costumes,da grande escritora,da precursora do feminismo,pairou forte sobre tudo mais.Seus anos de professora em Paris,Marselha e Rouen,antes da fama e da consagração,são para mim,a melhor parte.Sua determinação,sua coragem de se proporcionar uma vida mais plena,sua desmistificação dos lugares comuns da vida social,seu empenho em se tornar uma grande escritora e principalmente,
seu relacionamento com Sartre e seus amigos comuns,são narrados em minúcias,com grande riqueza de detalhes.
Durante muitos anos,li e reli todos os volumes de suas memórias,a saber-'Memórias de uma moça bem comportada,A força da idade,A força das coisas,Balanço final e o pungente A Cerimônia do adeus,que fala dos últimos(e tristes)anos de Sartre;assim como todos os seus romances e ensaios disponíveis.
Do sucesso e do impacto de"O Segundo Sexo",muito já se falou.Imaginem uma mulher,em 1949,dizendo que 'não se nasce mulher,torna-se mulher';e de página em página ir demolindo todos os mitos sobre o 'eterno feminino',a suposta fraqueza psíquica inerente às mulheres.Foi um grande barulho,essa desconstrução da mulher como mito,essa constatação que a verdadeira mulher não era aquela construída pelos homens ao longo dos séculos.
Como ela mesmo sublinha,foi chamada de tudo:mal amada,ninfomaníaca,feia,frustrada,vergonha de seu sexo,desavergonhada,entre outros mimos.
Depois de 'O Segundo Sexo' e do sucesso retumbante de 'Os Mandarins'(seu melhor romance,uma obra prima),Simone começou a grande empreitada de escrever suas memórias,que foram publicadas entre intervalos de 1958 a 1981.Elas abrangem toda uma vida,da primeira infância à velhice,e são um fascinante painel de grande parte do século XX(1909-1980).
Por outro lado,por mais realista e fiel aos acontecimentos que tenha pretendido ser,Simone muitas vezes,dourou a pílula,ou para ser mais exato,falseou alguns fatos,omitiu muitos,e principalmente evitou dar sua verdadeira opinião sobre fatos e pessoas.
Após sua morte foram lançados vários volumes de sua extensa correspondência:as cartas a Sartre,a Jacques Laurent-Bost(seu amigo e ex-amante,marido da amiga Olga Kosakiewski) e ao escritor americano Nelson Algren('Um amor transatlântico',publicadas no Brasil pela Nova Fronteira),por quem foi muito apaixonada.
As cartas caíram como uma bomba sobre a intelectualidade francesa e o público em geral,entre seus muitos amigos sobreviventes e também sobre a irmã Heléne de Beauvoir(chamada Poupette).Nas cartas,colocava todos os 'pingos nos is',e muitas vezes sua sinceridade
beirava a crueldade,era incisiva,sem mistificações.O grande escritor Jean Genet era um amigo querido,mas também "um pederasta cruel",Violette Leduc,"a mulher feia",Bianca Lamblin,"minha amiga judia",Olga Kosakiewski-Bost,"minha amiga tuberculosa",Truman Capote,"uma bicha desmunhecada",Albert Camus,"um misógino machista que só queria aparecer",e a irmã Hélene de Beauvoir,"uma pintora sem nenhum talento,uma pessoa cansativa e egoista",para falar dos primeiros que me vêm à mente.Nessa época ,nos anos 90,foi muito criticada,inclusive por contar em detalhes(ás vezes quase gráficos),sua vida amorosa com homens e mulheres(durante toda a vida negou ter tido relacionamentos amorosos com mulheres).A Simone de certa forma "oficial",se misturava com a "real".Todos esses fatos novos formaram um novo retrato da escritora,um retrato que,embora bem diferente do que ela própria pintou,nos mostram simplesmente,uma pessoa lutando pela felicidade de cada dia,por uma sinceridade que achava de direito.Uma pessoa propensa à depressão,tendo momentos de angústia,de percepção da instabilidade de todos os relacionamentos humanos,de medo da morte,da aniquilação final.
Entre os fatos e os mitos,fica a verdade de uma mulher que como poucas,simbolizou seu tempo e as contradições inerentes ao revolucionário,trágico e produtivo século XX.