Para ler-"A Obra em Negro" de Marguerite Yourcenar(1968)


Todos nós temos a visão de um certo paraíso perdido ideal:a infância ou a adolescência,um dia qualquer de felicidade intensa,perdido no tempo;um relacionamento,um lugar,ou até mesmo um livro,uma obra de arte.A história da humanidade nomeia certos períodos como "idades de ouro",tempos de mudanças de paradigma,épocas ideais em que supostamente um certo senso comum teria sido sobrepujado,e assim,teríamos atingido um novo patamar ou recuperado idéias e construções mentais há muito perdidas.



O século XVI é certamente uma época conhecida pelo retorno à antiguidade greco-latina,que há muito mofava nas bibliotecas dos mosteiros da Europa ou jazia dilapidada nos templos e edifícios públicos remanescentes,sendo conhecida por uma ínfima minoria de estudiosos.Era impressionante que no século XIV,o grego que durante centenas de anos fora a língua franca do Império Romano,fosse conhecido talvez por algumas centenas de pessoas.O que causou a mudança radical foi a intensificação do comércio,especialmente no norte da Itália e na região da Flandres(hoje Bélgica e Holanda),o que gerou uma prosperidade e um bem estar que haviam desaparecido do ocidente há mil anos.
A partir da metade do século XV,nas pequenas cidade-estado italianas(Florença,Milão,Nápoles,Ferrara,Mântua,Veneza,Pádua,Gênova,Turim),começou o movimento hoje conhecido como "Renascimento"(Rinàscita).A quantidade de gênios da pintura,da escultura,da arquitetura,do desenho,da gravura,da engenharia,da tradução(entre tantas outras áreas),parece ser mesmo sem precedentes na história da humanidade:Desde aqueles considerados os primeiros humanistas -Francesco Petrarca e Giovanni Bocaccio até Fra Angelico,Cimabue,Giotto,Pinturicchio,Della Robbia,Aretino,Andrea del Sarto,Masaccio,Boticelli,chegando aos grandes Leonardo da Vinci,Michelangelo,Rafael e Tintoretto,a renascença deu ao mundo uma nova e real perspectiva.
Porém,em uma contradição que parece ser peculiar à nossa espécie,as magníficas conquistas do renascimento ocorreram paralelas a um dos séculos mais sangrentos a registrar,em que mudanças radicais balançaram o equilíbrio de uma sociedade autoritária e hiper-hierarquizada.O surgimento do protestantismo causou a ruptura da unidade da cristandade européia.levando não só a antagonismos na esfera religiosa,mas também na política e social.As guerras de religião,a repressão dos movimentos sociais,as perseguições da inquisição aos dissidentes-contestadores do catolicismo oficial,ensanguentaram a Europa nesse século de contrastes gritantes.Por volta de 1550,a expectativa de vida média era de 32 anos,definida principalmente pela guerra constante,a altíssima mortalidade infantil e as pandemias frequentes(devido á precariedade da higiene e da habitação),para as quais não existia nem profilaxia nem medicamentos.
É usando esse pano de fundo que a grande escritora francesa Marguerite Yourcenar(1903-1987) escreveu "A Obra em Negro"(1968).Seu herói é um anti-herói,Zênon Ligre,aquele que discorda,que estuda o que pode compulsivamente,e principalmente, o que contesta as supostas "verdades"sociais.Nascendo bastardo(filho de uma adolescente e de um padre italiano)em uma rica família de banqueiros da cidade flamenga de Bruges,desde muito cedo conhece o desprezo e os entrelaçamentos falsos e pegajosos da moral burguesa,que vive "eternamente dentro de sua própria peça teatral".Destinado(como então os bastardos das famílias ricas)ao sacerdócio,decide procurar seu próprio caminho e tentar apreender algum sentido naquele mundo mesquinho e mergulhado nas mais grosseiras superstições.Estuda a precária medicina da época ,assim como a filosofia,e descobre que se quiser sobreviver às fogueiras da inquisição deve se esconder,tornar-se como que um outro.Esse romance essencial está repleto de sangue e vida,e é uma ode ao espírito humano que tenta se situar em meio ao caos político e social,que tenta erguer a cabeça entre os escombros de um mundo em constante transformação.Zênon passa pela vida como mais um,aos olhos da multidão desatenta,mas acumula para si a vivência profunda da vida como fim em si,não meramente como simples existência biológica,como um simplesmente "estar aqui"sem tentar levantar nem uma mínima fímbria da cortina que nos cerca.
Lançado no ano emblemático de 1968,"A Obra em Negro"foi saudado como uma obra prima pela crítica francesa,e Marguerite Yourcenar recebeu(pela segunda vez)um dos mais importantes prêmios literários franceses,o Femina.Ao nos desenrolar um outro século XVI,longe das belezas da renascença,e mais próximo ao sofrimento real de um ser humano deslocado em uma época dura da humanidade,a escritora faz também uma analogia com nosso tempo,aparentemente"ordenado",mas devorado pelas bordas pelo desrespeito ao outro,a destruição da natureza(em escala jamais vista),o mais absurdo consumismo e pela cada vez mais onipresente presença de um bio-poder difuso e que se fortalece.Infelizmente tudo muito parecido com o século XVI onde Zênon padece da angústia de quase nada poder fazer,enquanto se debate em meio à piedade por seus semelhantes.Uma obra que consumiu vinte anos de escrita e que ao final,nos dá mais um alento,mais uma esperança que a vida cale a pena se for objeto de transformação externa e interna.