Blogagem Coletiva-O meu Monteiro Lobato


Numa casinha branca,lá no Sítio do Picapau Amarelo moram duas velhas e uma menina...

Ainda hoje,abro as páginas das "Reinações de Narizinho,e me sinto quase do mesmo jeito que me sentia há tantos anos atrás,quando a partir desse livro comecei a ler a obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato.O meu Monteiro Lobato passou pelos anos,pela infância,pela adolescência, pela vida adulta e agora me acompanha no início da maturidade.Esses livros,que tantas vezes foram como uma casa para mim,um lugar mesmo para morar.

Muitos anos depois de conhecer Monteiro Lobato,fui ler o belo conto de Clarice Lispector-"Felicidade Clandestina",onde a narradora conta sua aflição em não poder ler as "Reinações" e a tortura psicológica que lhe era infligida por uma menina,filha do dono de uma livraria,que todos os dias lhe dizia que emprestaria o livro e nunca o fazia.E a personagem se consumia em tristeza,porque as "Reinações"era um livro"para se morar dentro",para "viver com ele".

Durante os anos da infância,como todos os leitores de Lobato,sempre quis que o sítio de Dona Benta fosse bem aqui perto, e as aventuras de Emília,Narizinho,Pedrinho e do Visconde também acontecessem comigo e com meus amigos.

Monteiro Lobato,me parece,nunca foi devidamente elevado à grandeza que merece pela crítica.E ,acredito,sem nenhum exagero,que essa mesma crítica não dispõe ainda de uma apreciação e de uma homenagem à altura de seu talento.

Muito se falou e se fala sobre seu grande mérito de ser o introdutor,'o puxa-vagão' da literatura infanto-juvenil brasileira.Sem dúvida ele foi;mas a maestria de seu estilo,tão sedutor,sua imaginação poderosa,seu patriotismo sem patriotadas,sua fusão das culturas euro-afro-indígena(o que não é nada mais que a cultura brasileira),seu desprezo a um maniqueismo religioso estereotipado,enfim sua grandeza literária,ainda pairam sobre toda a literatura brasileira como um brisa doce e benfazeja.

Gostaria de fazer aqui uma pequena'arqueologia'literária de Lobato.Tentar evocar Monteiro Lobato como o criador de um mundo platônico,ideal,mas no qual,as contradições nunca estiveram ausentes.Assim divido o meu Monteiro Lobato em alguns personagens(não todos),lugares e livros que me falam ao coração.


Personagens:


Dona Benta-A avó mais que moderna:revolucionária.É o oposto do adulto opressor,dá limites mas também dá liberdade,de viver e de sonhar.Culta,ponderada,grande leitora,vive 'na roça',mas conhece desde Homero até Anatole France,dá aulas sobre a guerra do Peloponeso ou sobre as causas da Segunda Guerra Mundial.Tem encantado milhões de netos em potencial e também houve uma época em que escandalizou legiões de carolas,horrorizados com seu catecismo do progresso da humanidade pela educação e pela imaginação.Respeita os netos(incusive Emília)como pessoas em si mesmas,não tristes arremedos de adultos.A regente do sítio não é nem um pouco despótica,reverencia todos os rituais da democracia.É uma incentivadora de todas as aventuras dos netos.O mundo mágico em que vive é só uma outra realidade,para ela tão palpável como esta.É célebre o seu vestido de gorgorão amarelo do tempo do imperador.Ela e Tia Nastácia formam uma dupla dinâmica,sempre prontas para a próxima viagem à Grécia Antiga ou ao castelo do barão de Munchausen.Enfim,é uma senhora bastante sensata,se bem que tenha sentado nas garras do pássaro Roca.


Tia Nastácia-Lobato,como muitos outros escritores de sua época,poderia ter feito dela um pobre estereótipo da faz-tudo negra e analfabeta.Negra e analfabeta sim,mas literalmente a criadora de Emília e a amiga de D.Benta.Não imprescindível por ser a cozinheira dos sonhos mas por ser amada por todos.Emília,Pedrinho e o Visconde vão até o labirinto de Creta para libertá-la do minotauro,mas ela mesma derrota o monstro grego através do sabor de seus bolinhos.Embora muitas vezes o mundo lhe pareça estranho,não acha nada de diferente nas aventuras da turma do sítio.


Narizinho-Uma neta,não dos sonhos,mas de todas as avós.Adorável,'comum',birrenta,às vezes respondona,muitas vezes encantadora,não encarna nenhum dos eternos modelos das meninas comportadas.Tem ciúmes de Emília e ao mesmo tempo a adora.Admira e respeita o Visconde,não sem uma ponta de ironia,e é a grande amiga de seu primo Pedrinho,se bem que nem sempre estejam em concordância.Também não passa recibo para Dona Benta e Tia Nastácia.Uma menina que vive toda nova aventura como uma viagem de descoberta e aprendizado.E ainda tem o famoso nariz arrebitado e quase se casou com um príncipe-peixe.


Pedrinho-Todos os meninos estão encarnados em Pedrinho:o menino Lobato,eu,você.Pedrinho é uma espécie de menino tão universal quanto é 100% brasileiro.Vindo da cidade grande para o sítio da avó,para ele o Picapau Amarelo é o outro lado luminoso e muito mais risonho da vida.Sua infância,é como eu diria,desatenta,ao mesmo tempo irônica e varonil.É capaz de derrotar a poderosa Cuca e morrer de medo de vespas,de chorar e de contar bravatas.É um herói mirim picaresco,e num sítio comandado por mulheres,o elemento masculino que Lobato,surpreendentemente(dado à sua própria época)não sobrecarregou de heroísmos inúteis.


Emília-Sedutora,antipática,engenhosa,inteligentíssima,teimosa,autoritária e doce.Tudo ao mesmo tempo.Para mim não é 'macunaímica',como muitos dizem.É pós-macunaímica.Está muito além da imagem de um país retrógrado e comodista.O fato de ter sido feita por Tia Nastácia e de ter evoluído de boneca de pano a pessoa,mostra como Monteiro Lobato a quis dotar de características as mais diversas possíveis,num verdadeiro' mix literário'.Na verdade,Emília é quem comanda o sítio,porque é seu verdadeiro cérebro.Curiosa,quer ver para crer("comigo é ali na batata").É capaz de heroísmos,se angustia e às vezes quase se desespera.Uma das grandes personagens da Literatura Brasileira,não só da infanto-juvenil.Com Emilia,Lobato realmente subiu à altura dos grandes criadores.


Lugares:


O Sítio do Picapau Amarelo-A grande utopia platônica de Monteiro Lobato.Uma espécie de lugar ideal,psicológico,fora do tempo e do espaço como conhecemos.Um sitiosinho como muitos pelo Brasil afora,com sua casa singela,seu pomar,seu jardim,seus animais,mas também ,um laboratório dos ideais de igualdade,fraternidade e liberdade,tão caros ao escritor;uma bandeira que Lobato ,como poucos escritores brasileiros,carregou a vida inteira.

No sítio não existem as travas sociais da repressão psicológica bem-pensante,da religião sufocante ou do ser humano simplesmente atirado à existência.As grandes aventuras de seus habitantes são uma evocação da grande aventura do ser humano,das possibilidades imensas que todos temos dentro de nós.Um monumento à inteligência e à sensibilidade.


O Reino das Águas Claras/O País das Fábulas-O outro lado dos contos de Grimm ou dos maravilhosos contos de Andersen ou Perrault.Num amálgama literário que une as mais belas descrições da literatura infantil com anedotas 'nonsense' e irônicas,Monteiro Lobato cria sua versão brasileira do maravilhoso europeu,misturando Branca de Neve,a Bela adormecida com presonagens das noites árabes, com dezenas de personagens novos e hilários,como o Major Agarra e não larga mais,Miss Sardine,Dona Aranha e tantos outros.Na descrição desses mundos fantásticos,Lobato usa um estilo invejável,pontilhado de finas ironias aos rituais da vida social e uma crítica feroz à vida sem poesia e sem leme.Esses reinos são também uma antítese ao sítio:seus personagens chegam a ser um pouco caricatos e cansativos para Emília:nada como a casa da gente...


Livros:


Reinações de Narizinho-Um dos livros mais despretensiosos da literatura brasileira ,mas que se tornou um fenômeno e inaugurou uma era.Lido geração após geração,amado e cultuado por grandes escritores como Clarice Lispector,Ruth Rocha,Caio Fernando Abreu,entre vários outros,é das obras mais generosas de Monteiro Lobato.Sua desconstrução dos contos de fadas(numa época em que não existia esse conceito)é de uma perícia impressionante,assim como a irreverência com que tratou personagens tradicionais é inesquecível.A surra que Emilia dá na formiga má(La Fontaine tem que acudir a pobre coitada,lembram?)Um grande livro-brinquedo.


O Minotauro-Fico pensando que se Lobato escrevesse em inglês,já teria batido de longe 'O senhor do Anéis' e a série 'Harry Potter'.Mas quis o acaso que ele escrevesse num chamado 'país periférico' e na nossa bela língua portuguesa.

Já perdi as contas de quantas vezes reli 'O Minotauro'.Aqui,realmente Monteiro Lobato atinge a alta criação,a perfeita união de estilo,forma,conteúdo e expressão.As aventuras dos habitantes do sítio na Grécia arcaica e simultanealmente na época de Péricles,Aspásia e Sócrates(aqui meros coadjuvantes!)são um exemplo de sua maestria como escritor e de sua generosidade como pessoa.Onde leremos cenas como a visita de Dona Benta e Narizinho ao Partenon recém -terminado?Onde saborearemos cenas como a aventura de Emília,Pedrinho e do Visconde no labirinto de Creta?Seria difícil pensar nas palavras certas para descrever a tristeza de Tia Nastácia na'cozinha' do labirinto,a fritar bolinhos inumeráveis para o gordo minotauro("o trigo venceu a ferocidade do monstro de guampas.disse à Emília a Pítia de Delfos).Um livro essencial.


A Chave do Tamanho-A obra prima de Lobato.Um dos livros mais audaciosos,brilhantes e fantásticos(literalmente)da literatura infanto-juvenil de todos os tempos.A engenhosidade de Monteiro Lobato,em plena Segunda Guerra Mundial,de conceber uma chave que torna todas as pessoas do tamanho quase de um inseto,é impressionante.E aqui Emília brilha de fato,como a grande personagem.O livro é todo dela:um monólogo sobre o horror do mundo e como resistir a ele.Um apólogo sobre as relações sociais,a ganância e a crueldade versus o engenho,a inteligência e a piedade.A primeira parte com a saga de Emília miniaturizada,solta no 'mundo natural' com seus predadores à espreita é de uma densidade raríssima em livros infanto-juvenis.A cena da travessia do jardim,com suas descrições 'naturalísticas' e devaneios 'darwinianos' sobre o destino do homem,para mim é antológica.Um clássico.


O meu Monteiro Lobato é esse escritor brilhante,polêmico,corajoso e terno,que em uma palavra,levou a beleza,o companheirismo,e a grande literatura a tantas gerações de brasileiros.Fico triste que nossos amigos portugueses não o conheçam,que o mundo não o conheça.

Nós temos tido esse privilégio há quase um século.Vamos preservá-lo,continuar passando-o para as novas gerações.