Para ler-"Cartas" -de Caio Fernando Abreu


            Caio Fernando Abreu(1948-1996),é para mim,e digo isso sem sombra de dúvida,um dos mais importantes escritores brasileiros.Desde suas primeiras obras no final dos anos 60,começo dos anos 70,sua voz se fez ouvir muito claramente em meio a uma literatura brasileira muitas vezes dominada por um certo ranço preciosista,por um planfetarismo infantil ou pelo psicologismo fácil.No que pese o preconceito homofóbico de uma certa crítica rasteira(que no entanto se acha muito moderna e cosmopolita),Caio soube escrever uma obra fiel à sua própria visão de mundo,coerente com seu sofrimento de ser humano,com suas experiências de vida e seu mundo interior,e porque não,com sua sexualidade.Legítimo herdeiro do"desbunde' dos anos 60/70,não se converteu,em momento algum em"carpideira da história",não se entregou à ressaca do Flower Power na forma adotada por tantos-um neoconservadorismo sem reflexão objetiva,que não soube,como bem diz Camille Paglia,trazer para a realidade palpável o legado das utopias libertárias.
Caio foi um dos últimos grande escritores de cartas,esse luxo da nossa época do e-mail e do twitter.Escreveu milhares durante sua vida,e aos mais variados destinatários,famosos e anônimos,amigos(as) do peito,conhecidos e quase desconhecidos.O crítico Ítalo Moriconi organizou essa coletânea de Cartas para a Editora Aeroplano em 2002,reunindo uma seleção de cartas que vão do adolescente de 1965 até seus últimos dias em 1995/1996.Dividido em 2 partes-"Todas as horas do Fim(1980-1996) e "Começo-O Escritor(1965-1979),as cartas acompanham todas as fases da vida de Caio,com a dificuldade de ser escritor num país ainda tão refratário à cultura como o Brasil,seus sofrimentos íntimos,sendo ele uma pessoa sensível,em meio à desesperança contemporânea e a superficialidade e futilidade de tantas pessoas.Essas cartas são para ler e de certa forma,viver e sentir com ele,são uma coletânea para se guardar no coração-a vida de um ser humano com todos seus altos e baixos,sua ânsia de amor e reconhecimento,que não são a de todos nós?
Caio teve centenas de destinatários.Destaco aqui sua amiga Jacqueline Cantore,para quem escrevia longas cartas,ás vezes com dezenas de páginas;Luciano Alabarse;Luiz Arthur Nunes,o ator Marcos Breda,Maria Adelaide Amaral(que o homenageou em sua minissérie "Queridos amigos");a artista plástica Maria Lídia Magliani;a escritora Lucienne Samôr,e muitos outros.Nas cartas fala da vida,dos amores curtidos e perdidos,da imprevisibilidade de nosso país sempre do futuro,do caos da vida urbana,da alegria de viver,do ofício de escritor,de fofoca,de tudo,praticamente.Destaco aqui alguns trechos que dão uma idéia dessa obra que acho monumental:
(...)tenho tentado aprender a ser humilde.A engolir os nãos que a vida te enfia goela abaixo.A lamber o chão dos palácios.A me sentir desprezado-com-um-cão,e tudo bem,acordar,escovar os dentes,tomar café e continuar.Não há de ser em vão(...)-carta a Jacqueline Cantore(18/04/1985)
(...)nossa necessidade fresca e neurótica de elaborar sofrimentos e rejeições e amarguras e pequenos melodramas cotidianos para depois sentar Atormentado e Solitário para escrever Belos Textos literários.-carta a Sérgio Keuchgerian (10/08/1985)
(...)Me veio vindo aos pouquinhos,não sei em de onde,um amor tão desesperado pelo Brasil.Desesperado é esse o adjetivo.A um ponto que,com aquele 'accent' de João Gilberto,a música que mais cantei aqui(na Inglaterra)-baixinho,só para mim mesmo-nesse tempo todo foi "isso aqui ôôô,é um pouquinho de Brasil iáiá",quando via algo ou alguma coisa que me lembrava o Brasil-carta a Guilherme de Almeida Prado(09/03/1991)
(...)Mas é difícil dizer às pessoas com menos de 30 anos que o tempo realmente passa.-carta a Maria Lídia Magliani(22/07/1991)
(...)Mas o que ia dizendo-não se enlouquece quando se tem um tanque cheio de roupa suja pra dar conta.Não é possível a gente se dar a esse luxo.-carta a Maria Lídia Magliani(10/09/1991)
Bem,o livro tem 532 páginas,e segundo Ítalo Moriconi,é só uma'pequena' amostra das cartas que Caio escreveu.Seu amor à vida,seus percalços amorosos,o ser escritor enquanto vocação e meta de vida,seu culto apaixonado a Clarice Lispector,enfim seu desnudamento como ser humano,são inesquecíveis,sedutores e há ainda,o registro histórico de toda uma época do Brasil e da vida intelectual brasileira.
Caio nos honra com sua presença de coragem moral e grandeza intelectual como poucas figuras,tidas como medalhões inquestionáveis,fazem.Salve Caio.