Madonna e Lady Gaga-Aproximações/Distâncias

Madonna surgiu em 1984 em pleno advento da era do videoclipe(assim como Michael Jackson).A Madonna de 'Borderline' dificilmente sugeriria uma cantora que tem se mantido em evidência por 26 anos,e é sem dúvida,um dos ícones da nossa época.E Madonna passou por várias fases,todas devidamente estudadas e orquestradas para chamar o máximo de atenção e trazer a maior publicidade possível.Mas é claro nunca teria ido longe se não fossem dois detalhes:inteligência e talento.
Lady Gaga é o produto de um novo tipo de mídia:aquela da era da Internet,que faz e desfaz em questão de meses,de semanas,de dias.E a moça tem se sustentado bem.Embora sua música não seja(ainda?) o que se possa qualificar de boa,seus vídeos são criativos e intensos.
Preâmbulos:
Gaga-sua colagem visual é mais fragmentada,mas também mais inócua.
Madonna-Evoluiu dos vídeos rasteiros de pin-up suburbana(como uma Marilyn reciclada e mais pop),passou pelo erótico-chique (ou 'porn-soft')de "Erotica" .Em 1990 causou grande escândalo com o livro de fotos também chamado Erótica(e com o documentário-"Na Cama com Madonna").O livro é tudo,menos erótico:as fotos são de uma sofisticação pseudo-decadente,estudada demais,e a encenação monocromática e algo forçada da cena S/M não passa nenhuma sensação de realidade-é um teatro estático,sem vida.
Mas grandes obras de Madonna surgem na virada dos anos 90:as grandes canções do álbum "Ray of Light" e alguns vídeos fabulosos como "Frozen","Ray of light" e a impressionante obra-prima "Bedtime Stories"(que é do álbum do mesmo nome).
Parêntese-Em ambas as cantoras é evidente a influência de um certo imaginário pornográfico gay(que em Madonna tem sutilezas e gradações-do mais chocante lugar comum ao sublime) e em Gaga transmuta-se muitas vezes na encenação do clichê,como em "Alejandro"( ou "Telephone"),com seu pesado cenário pseudo S/M,seus rapazes bombados e paramentados de couro negro,e o cenário rebuscado,pesado demais.E é até engraçado que Gaga ache 'blasfemo(?)" fantasias usando rosários e símbolos religiosos-nada mais antigo(Confiram a própria Madonna,Sade,Genet,os 'libertinos' do século XVIII).
Muito tem se falado da influência da cineasta alemã Leni Riefensthal no trabalho tanto de Madonna quanto de Lady Gaga.Riefensthal,que encenou com maestria os delírios do nacional-socialismo,e foi a diretora querida e preferida de Hitler e do sinistro Goebbels(o mentor do holocausto),hoje caminha para a quase canonização,passada uma borracha conveniente em seu passado de colaboração com o nazismo.A cineasta alemã que(apesar de seu passado)é uma grande diretora,promoveu em seus filmes(especialmente "Olympia" e "O Triunfo da Vontade") a glorificação da raça ariana,com seus homens e mulheres supostamente perfeitos(essa glorificação não existe na obra de Madonna e Gaga).É na glorificação de um ideal estético(não racista) que reside um ponto comum à videografia das duas cantoras.O que em Madonna é sempre sugerido,nunca sendo o foco,nos vídeos de Gaga torna-se o ponto central.Os filmes de Leni Riefensthal são pornográficos não por exibirem sexo gráfico(não há qualquer imagem dessa natureza),mas sim por pregarem a submissão dos corpos a um outro(no caso a um líder político-Hitler).Os corpos dos filmes de Riefensthal  não são os corpos reais,submetidos à realidade,portanto à decadência física,ao sofrimento,à morte,ou pelo menos à imperfeição corriqueira.São corpos fora do tempo,fora do real e portanto,meros símbolos de coisas,de idéias.A humanidade não é uma idéia monolítica,não é composta de top-models ou atletas malhados/bombados(esse é um tipo de imaginário que divide o mundo em duas absurdas/hiper-hipotéticas categorias:os 'muito belos' e os 'comuns ou feios(ou velhos,ou muito magros,etc)-como se essa realidade  fosse realmente possível,dada à  quase infinita e maravilhosa variedade dos seres humanos.A beleza em Riefensthal e em Gaga é pornográfica devido a essa 'coisificação' do ser humano,à insistência em estabelecer um suposto padrão estético,gerando um mundo que plana além do real,um mundo ideal(mas um ideal eminentemente perverso).Madonna foi sempre muito mais esperta e inteligente,e porque não brilhante,nesse aspecto.A narração em seus vídeos é quase sempre linear,embora nunca de maneira óbvia ou gratuita.As imagens são eloquentes,elas 'falam',exercem uma autoridade,ilustram idéias e conceitos e também buscam uma interpretação,uma mediação.Se há uma narração nos vídeos de Gaga,ela é fragmentada(o que é supostamente moderno),mas fragmentada não devido a um artifício artístico,mas  porque é a força da própria imagem em si e somente ela,que parece importar.As letras das canções de Lady Gaga são artísticas e estilisticamente pobres,redundantes,não se buscando qualquer outro significado(como Madonna nos anos 80),e indo além,as imagens impactantes estão ali inclusive para mascarar a ausência de conteúdo,para se contrapor à deficiência das palavras.assim,as palavras como que descem a um outro nível ,enquanto as imagens,de um hiper-realismo alucinatório são o único suporte.
A contestação radical dos costumes,que começando de forma explosiva nos anos 60,chegou até nós,teve desdobramentos específicos à  medida em que a indústria cultural foi capaz de assimilar e reciclar(assim aniquilando como sentido)a rebeldia autêntica e sincera em produto,(especialmente em produto midiático).Dois fatores parecem ter transformado o relacionamento indústria cultural /costumes de uma maneira absolutamente inesperada:o surgimento da epidemia de AIDS nos anos 80 e o triunfante advento da Internet.

É nesse cenário que se desenrolou a trajetória de Madonna e o no incerto(em todos os sentidos)quadro desse início esquizofrênico  do século XXI em que Gaga pode ou não decidir-se(ou ser decidida)a ser realmente,uma grande artista,alguém que tem algo a dizer que não sejam só balbucios estereotipados.