Quando morreu aos 78 anos em 1986,Simone de Beauvoir era uma unanimidade planetária.A mulher que rompeu tabus sexuais,literários,filosóficos e políticos havia se transformado em um modelo a se seguir,um estandarte vivo da modernidade à qual tantos aspiravam(e ainda aspiram),a porta voz de uma nova esquerda não dogmática e mundial,atuante e culta.Em sua vida pública,Beauvoir nunca desmentiu o mito,jamais,por assim dizer,deixou a peteca cair,sendo o exemplo vivo do gênio que dera certo.
Quando foi enterrada ao lado de seu companheiro de 51 anos,o grande Jean-Paul Sartre(que falecera 6 anos antes),no Cemitério de Montparnasse em Paris,Simone calmamente entrava,invicta e muito merecidamente,na História do Pensamento(o que,em se tratando do século XX,não é pouca coisa).Ela queria,antes de tudo,que uma autenticidade radical fosse sua marca como pessoa e intelectual,e principalmente,que nada cedesse de suas convicções políticas ,do modo como escolhera viver sua vida.Sua vida,semeada de lutas e incompreensões,foi um de seus legados.O outro,foi sua obra,que desigual,guarda grandes obras como suas Memórias(magníficas,inesquecíveis)divididas em 5 volumes-Memórias de uma moça bem comportada(1958),A Força da Idade(1960),A Força das Coisas(1963),Balanço Final(1972) e
a narrativa pungente(e polêmica)dos últimos anos de Sartre-A Cerimônia do Adeus(1981);seu romance sobre o pós-guerra "Os Mandarins"(Prêmio Goncourt),o"Ensaio sobre a Velhice" e o hiper-revolucionário "O Segundo Sexo",que inaugurava,com estardalhaço e erudição a era do 'feminismo real' no ocidente.A Beauvoir das memórias conta quase tudo-seu pacto de vida com Sartre,que incluia outros,os triângulos amorosos que viveu com ele e outros de seu círculo,suas certezas e medos,a elaboração de sua obra;tudo isso em detalhes,em minúcias.Mas em memórias,por mais que tentemos ser autênticos e sinceros,é impossível dizer tudo.Depois da morte de Simone,sua filha adotiva Sylvie Le Bon de Beauvoir publicou suas 'Cartas à Sartre' em 1990.As cartas causaram um frisson na França.Lá estava uma Beauvoir contando literalmente tudo-seus romances com homens e mulheres(ela que sempre negara envolvimentos com mulheres),suas opiniões bastante claras sobre o que pensava sobre muita gente(incluindo sua irmã,a pintora Heléne de Beauvoir),enfim,coisas que se falam em cartas escritas a um amante-companheiro-melhor amigo.Foi chamada de falsa,hipócrita,mentirosa.Mas porque?Ali Beauvoir não defendia uma imagem pública,ali ela era ela mesma.Porque mentiria a Sartre?Acho que os hipócritas são os que a detonaram.
Com a publicação de suas cartas a seu amante americano,o escritor Nelson Algren(Um Amor Transatlântico),sua imagem mudou de vez.Emergia então,a Beauvoir real,o ser humano,não uma abstração,a pessoa de carne e osso,não somente a grande escritora e personalidade pública.
A biógrafa australiana Hazel Rowley escreveu Tête-à-Tête baseada na memórias de Simone,em suas cartas,em seus diários(a maioria ainda não publicados),e em depoimentos de dezenas de pessoas que conheceram e conviveram com a escritora.Muito objetiva,sem se fixar no 'ídolo'Beauvoir ,Rowley conta a trajetória da escritora desde o momento em que ela conhece Sartre,em 1929, até sua morte em 1986,de edema pulmonar.Uma das melhores biografias de Beauvoir a datar ,que analisa o ser humano,não a persona da escritora genial e da militante política.Uma excelente sugestão de leitura.
Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre-Tête-à-Tête,de Hazel Rowley,Editora Objetiva.