Toda excelência gera deslumbramentos,impaciências,invejas,entusiasmos;toda uma gama de sensações que vêm à tona,quando os gênios questionam os paradigmas de seu tempo;desafiam o velho senso comum,produtor de paralisias culturais e atraso da sociedade.A literatura sempre foi uma caixa de ressonância dos rumos de uma época,e se ela produz escritores capazes de traduzir o espírito do seu tempo,suas contradições sociais e artísticas,ela também cria seus próprios fantasmas e incoerências,como toda arte.
Há escritores que de tal forma tiveram uma relação especular com seu tempo,que seus nomes se misturam a um determinado ponto da história,como Dante,Shakespeare,
Voltaire,Balzac,Dickens,Proust,Machado de Assis,Walt Whitman,Eça de Queiróz,Virginia Woolf,Joyce,Borges,entre tantos outros.
Victor Hugo é um desses escritores paradigmáticos,que mudaram o percurso da história literária,apostando em um novo modelo,em uma nova leitura da sociedade através da literatura.Grande farol do romantismo,Hugo criou uma voz única,ao tomar a palavra como instrumento de transformação.
Sua própria vida e suas circunstâncias se encaixariam perfeitamente em um caudaloso romance-rio romântico.Nascido em 1802,pouco depois do violento nascimento de uma outra concepção social, que foi a revolução francesa e seus desdobramentos.Um dos frutos imediatos,e de certa forma inesperados foi Napoleão.A partir daí,a França e a Europa viveram meio século de revoluções e guerras sangrentas.Victor Hugo,filho de um general de Napoleão,percebeu que a 'morte' do antigo regime e tudo que ele representava,como o classicismo,a mais feroz opressão social,a arte engessada em modelos ultrapassados,tinha que ser levada a cabo como uma nova revolução,dessa vez artística.
O Romantismo,tido hoje por uma parte da crítica como praticamente datado,era a revolução daquela época.E Victor,seu general de brigada,partiu para o ataque com o drama 'Hernani',que causou furor em Paris quando foi encenado em 1830.A partir daí Hugo vai lançando uma série de obra-primas como 'Nossa Senhora de Paris'(mais conhecido com-O Corcunda de Notre Dame),'As Contemplações'(poesia),o magnífico 'Os Miseráveis'(recém publicado na íntegra no Brasil pela Martin Claret),'Os Trabalhadores do Mar'(traduzido por Machado de Assis),o belo e comovente'O Homem que ri','Noventa e três'(sobre o período do terror na revolução francesa),entre as mais de 60 obras publicadas.
O crítico inglês Graham Robb,especialista em literatura francesa do século XIX,escreve uma biografia rigorosa, que longe de ser congratulatória,esmiuça todas as contradições do homem Hugo,e relação dessas contradições com a vida privada do escritor,que viveu um casamento falido e manteve um relacionamento extra-conjugal por 50 anos,que era a favor da mudança dos costumes,que denunciava as perversões mais abjetas da sociedade;mas que na intimidade(como Freud ou Jung,por exemplo)era um mantenedor da'moral e dos bons costumes',parte daquele triste time dos que temem o que'o que os outros vão pensar',ou 'a mulher é a rainha do lar'.Essa oposição talvez tenha feito Victor Hugo viver em conflito permanente consigo mesmo,o que o motivou a escrever uma das obras mais poderosas e consistentes do século XIX.
O homem que passou vinte anos no exílio,ou aquele que levou 3 milhões de pessoas a seu enterro apoteótico em 1885,estaria se revirando no túmulo ao ver a 'disneificação' de'O Corcunda de Notre Dame' ou a 'broadwaização' de 'Os Miseráveis' transformadas de monumentos literários a inócuos produtos de mau gosto e de consumo imediatista.
Indico a todos essa excelente biografia de um grande escritor,escrita com vigor e minúcia,por um especialista em Hugo.
Confiram-'Victor Hugo-Uma Biografia' de Graham Robb(Editora Record).
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