O BARCO ÉBRIO (LE BATEAU IVRE-1871)-ARTHUR RIMBAUD(1854-1891)-fragmentos


Comme je descendais des Fleuves impassible
-como descia já dos Rios impassíveis
Je ne me sentis plus guidé par les haleurs:
-Eu não me senti mais guiar pelos sirgadores
Des Peaux-rouges criards les avaient pris pour cibles,
-Deles fizeram alvo os índios irascíveis,
Les ayant cloués nus aux poteaux de couleurs.
-Depois de os atar nus aos postes de mil cores.

J'étais insoucieux de tous les équipages,
-Eu era indiferente a qualquer equipagem,
Porteur de blés flamands ou de cotons anglais.
-Portadora de trigo ou de algodão inglês,
Quand avec mes haleurs ont fini ces tapages,
-Quando meus sirgadores se calaram na margem
Les Fleuves m'ont laissé descendre où je voulais
-Os Rios me deixaram entrar no mar,de vez,

Dans les clapotements furieux des marées,
-Dentro do marulhar furioso das vagas
Moi,l'autre hiver,plus sourd que les cerveaux d'enfants,
-Eu,que mais surdo fui que cérebros de infantes,
Je courus!Et les Péninsules démarrées
-Corria agora!E as penínsulas desligadas
N'ont pas subi tohu-bohus plus triomphants.
-Nunca deram baldões,tombos mais triunfantes.

La tempête a béni mes éveils maritimes.
-O vendaval sagrou minhas alvas marítimas.
Plus léger qu'un bouchon j'ai dansé sur les flots
-Mais leve que uma rolha andei nos vagalhões,
Qu'on appelle rouleurs éternels de victimes,
-A quem chamam fatais balanceiros de vítimas,
-Dix nuits,sans regretter l'oeil niais des falots!
-Dez noites,sem pensar no olho vão dos faróis.

Plus douce qu'aux enfants la chair des pommes sure
-Mais doce que à criança as ácidas maçãs,
L'eau verte pénétra ma coque de sapin
-No meu casco de pinho penetra essa água esverdeada,
Et des taches de vins bleus et des vomissures,
-E das nódoas de vinho e vômitos infames
Me lava,dispersant gouvernait et grappin.
Me lavou,dispersando a âncora e o leme.

Et dès lors,je me suis baigné dans le Poème
-E depois,eu sem fim banhei-me no Poema
De la mer,infusé d'astres,et lactescent,
-Desse mar a ferver de astros e lactescente,
Dévorant les azurs verts;où,flottaison blême
-Sorvendo o verde-azul onde bóia,suprema,
Et ravie,un noyé pensif parfois descend;
-Lívida aparição de um cadáver silente.

Oú,teignant tout à coup les bleuités,délires
-Onde,tingindo em fúria as cérulas espirais
Et rythmes lents sous les rutilementsdu jour
-E ritmos lentos sob esse rútilo alvor,
Plus fortes que l'alcool,plus vastes que nos lyres
-Mais fortes que o álcool,maiores que vossas liras,
Fermentent les rousseurs amères de l'amour!
-Fermentam as amargas sardas do amor!

Je sais les cieux crevant en éclairs,et les trombes
-Sei o céu a estourar de relâmpagos,trombas,
Et les ressacs et les courants:je sais le soir,
-Sei as ressacas,a torrente,o entardecer,
L'Aube exaltée ainsi qu'un peuple des colombes,
-A aurora a delirar como um bando de pombas,
Et j'ai vu quelquefois ce que l'homme a cru voir!
-E vi alguma vez o que o homem julgou ver!

J'ai vu le soleil bas,taché d'horreurs mystiques.
-Vi o sol baixo constelado de horrores místicos
Illuminant des longs figements violets,
-Iluminar o mar com fuzis de ametista,
Pareils à des acteurs de drames trés antiques
-Semelhante aos atores dos dramas antigos,
Les flots roulant au loin leurs frissons de volets!
-As ondas rolando ao longe com tremores na crista!

J'ai rêvé la nuit verte aux neiges éblouies,
-Sonhei com a noite verde e com as neves deslumbradas,
Baiser montant aux yeux des mers avec lenteurs,
-Bejos vindos ao olhar dos mares,de quando em quando,
La circulation des sèves inouïes,
-Toda a circulação de seivas invioladas
Et l'éveil jaune et bleu des phosphores chanteurs!
-E o nascer de ouro e azul de fósforos cantando!

(Tradução de A.Herculano de Carvalho)

REVOLUTION,THE BEATLES

Revolution(Lennon-Mc Cartney)


You say you want a revolution
Well,you know,
We all want to change the world
You tell me it's evolution
well,you know
We all want to change the world
But when you talk about destruction
Don't you know you can count me out
Don't you know it's gonna be all right

You say you got a real solution
well,you know
we'd all love to see the plan
you ask me for a contribution
Well,you know
We're doing what we can
but when you want money
For people with minds that hate
All I can tell is brother you have to wait
Don't you know it's gonna be all right
All right,all right
ah
ah,ah,ah,ah,ah

You say you'll change the constitution
well,you know
we all want to change your head
you tell me it's the institution
well,you know
you better free your mind instead
But if you go carrying pictures of chairman Mao
you ain't going to make it anymore anyhow
Don't you know it's gonna be all right
all right,all right,
All right,all right,all right,
all right,all right,all right.
---


There's a certain slant of light,

winter afternoons-

That opresses,like the heft

Of Cathedral Tunes-


Heavenly Hurt,it gives us-

We can find no scar,

But internal difference,

Where the Meanings,are-


None may teach it-any-

'Tis the Seal Despair-

An Imperial affliction

Sent us of the air


When it comes,the Landscape listens-

Shadows-hold their breath-

When it goes,"tis like the Distance

On the look of Death



Há um certo Viés da luz,

Tardes de inverno-

Que oprime,como o Peso

Das melodias de uma Catedral-


Dor celeste nos causa-

Não vemos cicatriz,

Masuma diferença interna,

No lugar dos Sentidos-


Ninguém pode ensiná-lo-Nada-

É o Selo Desespero-

Um mal Imperial

Que nos vem da Atmosfera-


Quando ele chega,a Paisagem escuta-

As sombras-prendem a respiração-

Quando ele se vai,é como a distância

Na visão da Morte-


(tradução de Marcos Santarrita)



Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone.
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He is Dead,
Put crépe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song,
I thought that love would last forever: 'I was wrong'

The stars are not wanted now, put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood.
For nothing now can ever come to any good.



Parem todos os relógios, desliguem o telefone,
Não deixem o cão ladrar aos ossos suculentos,
Silenciem os pianos e abafem o tambor
Tragam o caixão, deixem passar a dor.

Que os aviões voem sobre nós lamentando,
Escrevinhando no céu a mensagem: Ele Está Morto,
Ponham laços de crepe nos pescoços das pombas da região,
Que os polícias de trânsito usem luvas pretas de algodão.

Ele era o meu Norte, o meu Sul, o meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho, o meu descanso de domingo,
O meu meio-dia, a minha meia-noite, a minha conversa, a minha canção;
Pensei que o amor ia durar para sempre: “não tinha razão”.

Agora as estrelas não são necessárias: apaguem-nas todas;
Emalem a lua e desmantelem o sol;
Despejem o oceano e varram a floresta;
Pois agora nada mais de bom nos resta.

BOM CARNAVAL PARA TODOS-CARMEM MIRANDA E ELIS REGINA




Meu Sonho (Cecília Meireles)

Parei as águas do meu sonho
para teu rosto se mirar.
Mas só a sombra dos meus olhos
ficou por cima, a procurar…
Os pássaros da madrugada
não têm coragem de cantar,
vendo o meu sonho interminável
e a esperança do meu olhar.
Procurei-te em vão pela terra,
perto do céu, por sobre o mar.
Se não chegas nem pelo sonho,
por que insisto em te imaginar ?
Quando vierem fechar meus olhos,
talvez não se deixem fechar.
Talvez pensem que o tempo volta,
e que vens, se o tempo voltar

PSYCHO TOP KILLER-INTRODUÇÃO-JAMES PENIDO


Foi quando saía do metrô,na estação da rua 47 com a quinta avenida,que viu o gigantesco outdoor.Uma moça loura e sorridente de maiô azul parada ao lado de uma piscina de água translúcida como numa pintura de David Hockney.A luz intensa de um verão impossível e imaginário cobria a grama,as árvores,o mar ao longe.Seu rosto levemente eslavo emanava a tranquilidade falsa dos que estão sempre felizes.os olhos muito azuis olhavam firme,num desafio em que havia alguma arrogância e uma ironia fina,como se fosse dizer-você nunca vai viver uma vida assim.
Parada na calçada,no meio da multidão quase compacta,das buzinas,do amarelo corruscante dos táxis,ficou olhando encantada a foto imensa.O painel tomava toda a lateral de um prédio falso rococó,cheio daquelas torrezinhas que são o charme e o ridículo de Nova York.Era ela.Era a sua foto,exposta para a cidade inteira(e porque não para o mundo?).O mundo da Vogue,Elle,Marie Claire,OG,L'Éternel,Mode.Um mundo de papel,de rotogravuras,.de dinheiro,do que sempre se quer e nunca se alcança.
De repente começou a rir perdidamente,num crescente sincopado.Cristo na cruz!Depois de tudo que passara,de todas as frustações e pequenos tormentos que por muitos anos tinham constituído sua vida,algo realmente estava acontecendo.
Uma onda de júbilo a envolvia quente,quente.Era aquela talvez,uma pequena amostra de alguma felicidade futura?Do tanque a Nova York não era mais ficção,nome de biografia fajuta,conto de fadas,mesa redonda do canal brega.Seus medos mais sinceros e por isso mesmo,mais profundamente enterrados,lentamente emergiam para sere mais uma vez enfrentados.O tempo das vacas magras,da carne roída até o osso,do lamber beirada de penico:todos os lugares comuns do anonimato e da pobreza se desvaneciam em sua mente.Porque o mundo existia de uma forma muito mais intensa e perturbadora,percebeu então.Estar no mundo e viver eram coisas muito distintas.
Não sabiam onde nascera,como era a casa em que vivera por muitos anos.Sórdido,agradável,pequeno,tranquilo,pobre-não eram só palavras?Queria provar a si mesma que tudo realmente passava,que as feridas da alma e do coraçao lentamente se fechavam.
Margarete,Iná,Dona sininha,Marquito:todos esses personagens de sua infância espectral de borralheira,agora moravamem um outro planeta.Aquele seu novo planeta de bolsas de dez mil dólarese edifícios de vidro fosco,ao mesmo tempo tão frio e tão quente,era onde deveria ter sempre vivido.Aquele fim de mundo do Paraná de onde viera,com suas casinhas de madeira que pouco a pouco se descoloriam com a chuva,era o lugar para onde nunca mais voltaria.Ela tinha certeza absoluta disso,porque muito maior que sua ambição era seu horror ao passado.

COLDPLAY-YELLOW-O SUBLIME COLDPLAY EM SEU MAIS BELO CLIP






































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Pelo silêncio que a envolveu, por essa
aparente distância inatingida,
pela disposição de seus cabelos
arremessados sobre a noite escura:
pela imobilidade que começa
a afastá-la talvez da humana vida
provocando-nos o hábito de vê-la
entre estrelas do espaço e da loucura;

pelos pequenos astros e satélites
formando nos cabelos um diadema
a iluminar o seu formoso manto,

vós que julgais extinta Mira-Celi
observai neste mapa o vivo poema
que é a vida oculta dessa eterna infanta.



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Essa pavana é para uma defunta
infanta, bem-amada, ungida e santa,
e que foi encerrada num profundo
sepulcro recoberto pelos ramos

de salgueiros silvestres para nunca
ser retirada desse leito estranho
em que repousa ouvindo essa pavana
recomeçada sempre sem descanso,

sem consolo, através dos desenganos,
dos reveses e obstáculos da vida,
das ventanias que se insurgem contra

a chama inapagada, a eterna chama
que anima esta defunta infanta ungida
e bem-amada e para sempre santa.



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Essa infanta boreal era a defunta
em noturna pavana sempre ungida,
colorida de galos silenciosos,
extrema-ungida de óleos renovados.

Hoje é rosa distante prenunciada,
cujos cabelos de Altair são dela;
dela é a visão dos homens subterrâneos,
consolo como chuva desejada.

Tendo-a a insônia dos tempos despertado,
ontem houve enforcados, hoje guerras,
amanhã surgirão campos mais mortos.

Ó antípodas, ó pólos, somos trégua,
reconciliemo-nos na noite dessa
eterna infanta para sempre amada.

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Medo da Eternidade

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Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.

Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:

- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.

- Não acaba nunca, e pronto.

- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.

- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.

- Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.

- Acabou-se o docinho. E agora?

- Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.

Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!

- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

LISPECTOR, Clarice. Medo da eternidade. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p. 446-8.















































VIDÊNCIA

Se os nossos olhos te enxergassem, rosa,
E não só: “É uma rosa” nos dissessem
Na vulgar gradação que nunca esquecem,
Que epifania na manhã tediosa!

Se eles vissem, ao vê-la, cada coisa
E não seu nome, se afinal pudessem
Fugir da furna abstrata onde destecem
A vida, um morto partiria a lousa

Maciça de aqui estar. Flor, nuvem, muro,
Árvore, que é uma só e não tal nome,
Se tudo entrasse o corredor escuro

Que há em nós, algo de exato se ergueria,
Algo que pára o tempo ou que o consome,
Que alveja a noite e entenebrece o dia.

Yoomp

VELÁSQUEZ,DIEGO RODRIGUES DE SILVA Y(1599-1660)-PINTURAS






















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HELENA

No cômodo onde Menelau vivera
Bateram. Nada. Helena estava morta.
A última aia a entrar fechou a porta,
Levavam linho, ungüento, âmbar e cera.

Noventa e sete anos. Suas pernas
Eram dois secos galhos recurvados.
Seus seios até o umbigo desdobrados
Cobriam-lhe três hérnias bem externas.

Na boca sem um dente os lábios frouxos
Murchavam, ralo pêlo lhe cobria
O sexo que de perto parecia
Um pergaminho antigo de tons roxos.

Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas,
Compuseram seus ossos quebradiços,
Deram-lhe à boca uns rubores postiços,
Envolveram-na em faixas perfumadas.

Então chamas onívoras tragaram
A carne que cindiu tantas vontades.
Quando sua sombra idosa entrou no Hades
As sombras dos heróis todas choraram.

De Lucernário (1993)



























Nick se mudara para a grande casa branca dos Fedden em Notting Hill havia poucas semanas. Seu quarto ficava no sótão, que continuava a ser o espaço das crianças, com os segredos e a rebeldia dos adolescentes pairando no ar. O quarto muito bem-arrumado de Toby ficava no alto da escada, o de Nick logo abaixo da clarabóia e o de Catherine na outra extremidade; Nick não tinha irmãs ou irmãos, mas se considerava ali o filho do meio. Foi Toby quem o levou para lá durante umas férias a fim de que ele passasse uma “temporada” em Londres, longe de sua família bem menos glamourosa, e a presença seminua do amigo ainda dominava a passagem do sótão. O próprio Toby talvez não soubesse por que ele e Nick eram amigos, mas aceitava de boa vontade essa amizade. Depois que eles se formaram em Oxford, Toby raramente estava em casa, e Nick passou a ser considerado como um amigo pela irmã caçula e pelos pais hospitaleiros. Um amigo da família. Alguma coisa em Nick lhes dizia que ele era confiável, uma gravidade, uma certa elegância tímida, algo não muito aparente para ele próprio, que fez com que a família concordasse em aceitá-lo como inquilino. Quando Gerald venceu em Barwick, eleitorado natal de Nick, o acontecimento foi aclamado jovialmente por ter a lógica da poesia ou do destino.
(...)
Na sua primeira visita a Kensington Park Gardens ele foi recebido por Toby, que o deixou sozinho na casa e avisou que sua mãe chegaria logo depois. Quando Nick ouviu a porta da frente abrir e fechar, desceu e apresentou-se à senhora bem apessoada, de cabelo preto, que organizava a correspondência no hall. Falou animadamente sobre o retrato que tinha visto na sala de estar, e só depois de algum tempo, ao ver o sorriso de deferência da mulher e ao perceber seu forte sotaque, é que compreendeu que não estava falando com a respeitável Rachel e sim com a governanta italiana. É claro que não havia nada de errado em trata-la com tanta delicadeza, e as opiniões de Elena sobre Guardi eram provavelmente tão interessantes quanto as de Rachel e mais que as de Gerald, mas aquele momento que ela parecia lembrar como algo encantador, Nick evocava como uma pequena gafe.
Mesmo assim, sentado no banco ao lado de Toby, sentindo nele o cheiro de sabonete e café, encostando ligeiramente seu joelho no dele para pegar o açúcar, Nick sentiu que tinha tido sucesso. Isso acontecera um ano atrás, e agora era uma lembrança rica em associações. Pegou a agenda que mal tinha sido olhada e passou a mão na capa macia, como que para compensar o descaso de Toby com o presente, e também, de forma remota, como se estivesse alisando uma parte cabeluda e quente do amigo. Toby estava falando em ser jornalista, e aquele presente era quase um insulto, uma tentativa relapsa, revelando nos pais um senso de mero dever que o alto preço do presente disfarçava. A agenda não abria totalmente, e alguns endereços ou “idéias” a teriam completado. Era difícil imaginar Toby usando-a em uma fila de piquete ou acotovelando-se para conseguir uma resposta de um ministro rodeado de câmeras.
- Você deve ter ouvido o falatório sobre Maltby, é claro - disse Toby.
Imediatamente Nick sentiu o ar da sala começar a formigar, como no início de uma reação alérgica. Hector Maltby, um assessor do ministro das Relações Exteriores, tinha sido apanhado com um garoto de programa no seu Jaguar, no castelo de Jack Straw. Renunciara rapidamente ao posto e, ao que parecia, ao seu casamento. O caso fora veiculado em todos os jornais na semana anterior; era uma bobagem Nick sentir vergonha daquilo, corando como se ele próprio tivesse sido apanhado no Jaguar. Muitas vezes, quando o assunto do homossexualismo vinha à baila, e mesmo na cozinha tolerante dos Fedden, ele ficava apreensivo quanto ao que poderia ser dito - algum insulto indireto que tivesse de engolir, uma brincadeira de mau gosto. Mesmo o caso absurdo do gordo Maltby, uma caricatura do “novo” Tory ganancioso, parecia ser uma alusão ao seu próprio caso velado; numa breve crise de paranóia, parecia levantar suspeitas sobre seu interesse pela linda perna bronzeada de Toby.
- O bobão do Hector - disse Gerald.
- Não ficamos assim tão surpresos - ponderou Rachel, com sua ironia característica.
- Vocês o conheciam? - perguntou Toby, no seu novo estilo de “entrevista”.
- Um pouco - respondeu Rachel.
- Não muito bem - disse Gerald.