Três malandros:Encólpio,Ascilto e Giton, viajam pelo império romano durante o reinado de Nero(54-68 d.c.),vivendo as mais bizarras e absurdas aventuras.Resumindo assim,Satyricon,uma das obras primas do grande Federico Fellini,pode parecer mais um desses filmes que se passam na antiguidade clássica.Mas ao adaptar a narrativa (na verdade um fragmento de uma obra muito mais extensa) atribuída a Petronius Arbiter(um aristocrata da corte imperial),Fellini realizou um de seus filmes mais contundentes e oníricos.
A sociedade retratada em Satyricon é a do império romano então 'senhor do mundo',no auge de seu poder e esplendor,ao mesmo tempo em que emergiam os primeiros sinais da decadência irreversível.Nessa época,dominada pela ostentação,pela opressão política e pela corrosão social,os romanos,por assim dizer,deitavam-se sobre a cama dourada propiciada pelo dinheiro vindo de todas as partes do mundo conhecido e dominado a ferro e fogo pelo poderoso exército do império.
A riqueza(imensa e usufruída por poucos)dava o tom de um modo de vida direcionado inteiramente para o prazer imediato(fosse ele de qualquer natureza)a qualquer custo.A elite e a classe média instruída enxergavam nos prazeres o único alento em um mundo brutal e sem os deuses em que não acreditavam mais;a chamada 'ralé'(os cidadãos romanos pobres) se apertavam nos subúrbios e nos cortiços das grandes cidades do império,sempre pronta para os horrores do circo e para a exigência de mais benefícios e menos trabalho;e os escravos,vistos como 'seres sem alma',meros 'animais de carga',esfalfavam-se para atender seus donos nas mais absurdas e inomináveis exigências. Em plena era 'flower power' do final dos anos 60,Fellini realiza Satyricon de maneira histriônica,quase operística,com cores fortes em meio às sombras.Seus três personagens principais passeiam por um mundo que oscila entre o sonho e o pesadelo,em cenários de um requinte seco,de tons lavados.Todo o furor suicida da elite romana e de seus párias nos é mostrado de uma maneira única,psicodélica,estonteante.Sem nenhum tom moralista ou moralizante,o diretor italiano mostra sem véus a opressão,a desesperança,o desprezo pelo outro,a grosseria de uma elite que se julga dona de valores inquestionáveis;mas que está perdida e nem mesmo sabe disso.Uma obra de protesto contra a mercantilização da vida e do ser humano,contra os que se pretendem ser o 'supra sumo' sem se dar conta que a opressão,de qualquer natureza,um dia cobra seu preço.Uma análise profunda da decadência de todos os sistemas que se auto- outorgam o título de organizadores e intérpretes de uma sociedade.Um apólogo contra a dominação ,contra o cinismo dos que se acham melhores que o 'resto'.Uma obra prima para ser vista com atenção.