JOÃO GILBERTO NOLL-CONTO-"O TIMBRE AVELUDADO E A MÃO INTENSA"


O timbre aveludado e a mão intensa


Foi justamente nesse dia em que crianças brincavam ao redor da minha casa na raiz de uma colina ao norte da Califórnia, foi justamente nesse dia aí que acordei com a gritaria de crianças endiabradas ao redor da minha casa, sim, no meu pátio todo irreal tamanha a primavera pelos jardins da baía de San Francisco, foi nesse dia sim, eu bem me lembro, que ao tomar a primeira água da manhã na cozinha já ensolarada cheguei à conclusão de que precisava me apaixonar. Saí de casa em meio à algazarra infantil, com os livros do curso que eu dava na Universidade de Berkeley numa das mãos, na outra uma velha sacola de supermercado atulhada de roupas para a lavandaria. A porta da lavanderia fez como sempre tlim-tlim quando a abri. A bela chinesa com seu inglês todo arrevesado perguntando-me o mesmo de sempre:

- Can I help you?

É... eu chegava com a sacola atulhada de roupas para lavar e não dizia nada, apenas esperava a sua voz de chinesa recatada, uma voz que parecia pertencer a uma natureza recém-aflorada para tão-só aquilo: estar ali e não em outro lugar, a perguntar no seu inglês parco aquelas linhas sem muita sustentação, quase rarefeitas, linhas que se apresentavam como vindas de um estado de abandono que eu ainda não pudera imaginar.

- Can I help you?

A água que havia pouco eu bebera como que escorregou de novo dentro de mim, uma água matriz, de uma fonte escondida - e decidi o que até então nem tinha calculado, como se desta fonte imemorial tivesse escorrido também esse meu tonto gesto: levantei a sacola de ponta-cabeça e as minhas roupas se espalharam sobre o balcão, afogando uma das mãos da bela chinesa. Senti a minha mão também por ali, esquecida debaixo daquele monte de roupas, toalhas, lençóis. Os tecidos sobre nossas mãos exalavam o pesado cheiro de uso. Avancei meu braço bem devagar, quase um caranguejo. As roupas sobre o balcão nem se mexeram. Cobri a mão da bela chinesa. Que não a retirou.

- Não tem vontade de conhecer o Brasil?

A voz me saiu em sussurro mas num inglês pausado.

- Passei a infância em São Paulo.

Ela contou a novidade entrando num português de razoável pronúncia brasileira, ao mesmo tempo que abria pela primeira vez um sorriso franco para mim. As nossas mãos suavam muito debaixo de cheiro de cerrado uso daquelas roupas, toalhas, fronhas, lençóis.

- Busco quando?

- Amanhã...

A porta fez tlim-tlim. Entrava um homem com duas sacolas transbordantes. O homem me olhou com o ar... não sei bem... olhar de quem pescara alguma coisa ali. Passei a mão pela minha calça, me olhei no espelho: levemente excitado... Diante do espelho fiquei alguns segundos, até considerar que no meu corpo já se apagara qualquer vestígio do momento anterior. Saí dizendo até amanhã. Na calçada repeti como se em gota a gota: A-té-a-ma-nhã. No café ao lado pedi um chá preto. Então pus-me a olhar cada coisa daquele recinto como se fosse a última, sei lá, e meio atarantado por estar a viver uma lentidão extremosa que aquele país costumava rechaçar, falei baixinho, supliquei: me dê saúde até amanhã, em surdina sim, olhando agora aqueles estudantes debruçados sobre mesas a ler e escrever. Estavam todos tão absortos em seus estudos que ninguém ouviu a minha voz arisca a implorar, a rezar talvez. Me dê saúde até amanhã, repeti um pouco mais alto. Uma estudante pareceu ter ouvido: levantou a cabeça da página, olhou-me e, sinceramente, era isto o que estava acontecendo ali, exatamente isto, e ali: a estudante a me olhar era a mesma mulher da lavandeira, sim, a chinesa que eu conheci de cor, a me olhar. Quem sabe gêmeas? Sondei com meus botões. Me dê saúde até amanhã veio-me agora um tanto alto, no meu velho português. A chinesa, como se sofresse um atordoamento, explodiu uma risada, sem pudores diante daqueles estudantes com implacável performance de concentração. Ela gargalhou com seus dentes perolados, como se euforia e tempestade. E eu não fiquei. Fui tomando meu chá preto no copo de plástico pelas calçadas, a cantar baixinho o hino do meu clube da mocidade que me vinha inteiro agora, começando assim: me dê saúde até amanhã, saúde que garanta o timbre aveludado e a mão intensa, me dê, me dê saúde eu peço, até amanhã... E o mesmo me acontecia ainda: olhava cada coisa como se o possível encanto delas fosse durar só até a próxima esquina. Olhava cada coisa como se tudo me pertencesse, parte integrante de mim, como o fígado, a unha, pescoço, pé. Posso morrer, meditei. E de fato logo depois senti uma ferroada no coração. Só me deu tempo de trazer a mão ao peito e pensar com fulminante convicção que o resto da história realmente não me interessava mais, que estava desimpedido da inércia da duração, alguma coisa assim: que eu já tinha atravessado uma boa extensão, que agora só me interessava mesmo era boiar como já fazia naquele instante sobre a superfície do dia, a ponto de poder mirar o sol de frente, cegar-me, exaurir-me, até entrar de vez no sono molecular. Escuta aqui, não foge, não terminou, ainda tenho o que contar, ouvir, olha ali aquele ponto ínfimo a flutuar rente ao tronco, não te aproxima muito que com a força da tua respiração ele se afasta para longe, voa...

A moça chinesa abre a porta da lavanderia, senta-se no degrau, canta a melodia de seus ancestrais. Quem foi, quem é, ela já não sabe. Sabe de um sonho amável, iluminado por uma lua ninfa, mas que já passou, já derreteu, evaporou que sabe...

Berkeley, maio de 98

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