A resposta à pergunta-"de onde viemos" geralmente se aplica ,filosoficamente ,a nós mesmos.Mas existe um outro contexto ao qual ela pode também se aplicar:o conceito de nacionalidade,de país.E a frase "que país é esse "(ecoando tantas vozes ao longo dos séculos,dos poetas mineiros do século XVIII ao grande Renato Russo),é uma pergunta que temos feito ,individual e coletivamente,há muitas e muitas gerações.
Não há nenhuma dúvida que a história é um processo:confuso,doloroso,repleto de idas e vindas,carregando em sua voragem,alegria,desespero,trabalhos de vidas inteiras,vidas simples e insignificantes daqueles que constroem,em silêncio,o país;as chamadas 'vidas eminentes',daqueles que dão seu nome à nossas ruas e praças,escolas e hospitais.Irônicamente,esses 'sem nome' e esses nomeados (tantas vezes inomináveis) se entrecruzam e firmemente se juntam na corrente vertiginosa chamada processo histórico.
Os mitos da construção do Brasil,já tão estudados e analisados minuciosamente,não são mais do que isso:mitos,construções mentais ideológicos que encobrem o que podemos chamar,sem leviandade,de 'Real'.
O país,a princípio formado pelas chamadas 'três raças tristes'(por Gilberto Freyre,Pedro Nava e Afonso Arinos):o português,o africano e o índígena ,(e depois,entrecruzados por dezenas de povos),parece se debater há séculos ,em uma tensão de origem,em um debate infindável sobre que tipo de nação somos e queremos ser.Aqui,entra o fermento da ideologia que borbulha tantas vezes com veemência à superfície.
À civilização benfazeja do Brasil,ao homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda,à mistura quase edênica de Gilberto Freyre,se juntam as violentas relações sociais,que infelizmente,dão ainda tom,nada lisonjeiro,em nosso país.
Em "Boca do Inferno",a escritora cearense Ana Miranda(1951)-autora também do deslumbrante "Desmundo",busca na Salvador do final do século XVII,poeta Gregório de Matos (Guerra)-(1636-1695),chamado 'Boca do Inferno',para dar,em um admirável romance,sua visão da origem,ou sua visão do 'Real' que funda o começo da nossa civilização.
Em um dado tempo-o final do séc.XVII,e algumas circunstâncias peculiares ,o enredo(bastante linear),conta a luta contra os desmandos de Antônio de Souza Menezes,mais conhecido por sua alcunha de 'Braço de Prata'(por usar uma prótese de prata no lugar do braço amputado),que envolve grandes nomes da aristocracia luso-brasileira e do clero da Bahia,à frente dos quais brilha o Padre Antônio Veira(1608-1697),um dos grandes oradores e escritores do barroco ibérico-brasileiro(e também uma espécie de grande gênio perdido entre os horrores de seu tempo).Defensor dos direitos dos índios e do controle rígido dos desmandos da inquisição,Vieira aparece como um emblema da inteligência e da piedade em meio a um mundo de total desrespeito aos seres humanos.É no antes,durante e depois do antentado dos conspiradores contra Francisco Teles de Menezes(irmão do governador) que a gira escritora sua história.
Muitos dos conspiradores são presos (incluindo Bernardo Ravasco,irmão de Padre Vieira) e tem início uma repressão feroz por parte do governador,em nenhuma das infâmia são poupadas aos acusados.
Uma cidade que "parecia ser a imagem do paraíso"vai se tornando pouco a pouco um lugar "onde os demônios aliciavam almas para povoar o inferno."
Entre os inúmeros personagens descatam-se o próprio poeta Gregório de Matos,que se situa entre a escrita das ferozes sátiras contra os poderosos da ocasião e a prática heterodoxa do que mais tarde se chamaria 'amor livre',seduzindo e sendo seduzido por inúmeras mulheres,desde prostitutas como Anica de Souza até damas aristocráticas como Bernadina Ravasco,passando pela bela e trágica Maria Berco.
Plenamente consciente que a suposta luta 'pela liberdade',não era senão uma luta interna pelo poder entre a elite bahiana,Gregório cedo se desilude com qualquer possibilidade de mudança,iniciando um período de exarcebação crítica em suas corrosivas e certeiras sátiras,nas quais a corrupção dos graúdos e a acomodação venal da igreja católica,são simplesmente desmontadas e vituperadas até não sobrar pedra sobre pedra.
Mesclando história e ficção,a autora nos leva a refletir sobre como realmente é o país que queremos e como essas propostas de mudança têm necessariamente que sair de uma reflexão sobre a modernidade,sobre as armadilhas com que a ideologia tenta encobrir o real,do qual somos parte essencial como agentes de uma história que muitas vezes é escrita à nossa revelia pelos que pretensamente tentam sobrepor sua voz à nossa,e ainda mais contundentemente,tentar ser arautos de algo que é exterior a nós mesmos-seja a reificação da humanidade ou a fabricação de um 'real aparente'.
Esse romance,nos ajuda como brasileiros,a tentarmos nos situar como elos de transformação da nossa sociedade,que ainda tantas vezes insistir na continuidade de um quadro social social constrangedor e primitivo,em contraste com a imensa capacidade de nosso povo.Grande leitura,de um capítulo da nossa história,que já se repetiu de mil formas.Cabe a nós construirmos um mundo social onde a modernidade e a solidariedade dêm a nota essencial.
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3 comentários:
Paulo Roberto Figueiredo Braccini - Bratz
9 de fevereiro de 2010 às 14:59
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taí gostei da indicação ... vou ver se compro para ler no carnaval ...
obrigado querido
bjux
;-)
Unknown
10 de fevereiro de 2010 às 10:02
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Já comentei, mas não aparece. Houve quiça um lapso. É só para dizer que apreciei o texto e as considerações feitas sobre a necessidade de limpar a História da capa enganadora dea Ideologias. Obrigado pela informação que dá sobre o livro. Um abraço.
Mauri Boffil
10 de fevereiro de 2010 às 15:16
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eu tb vou procurar... quero algo pra ler nesse carnaval tb! Odeio furdunço!
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