VISÃO DE CLARICE


Clarice

Veio de um mistério,partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.

Ou o mistério não era essencial.Essencial

Era Clarice viajando nele.


Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,

onde a palavra parece encontrar

sua razão de ser,e retratar o homem.


O que Clarice disse,o que Clarice

viveu para nós

em forma de história

em forma de sonho de história

em forma de sonho de sonho de história

(no meio havia uma barata ou um anjo?)

não sabemos repetir nem inventar.

São coisas,são jóias particulares de Clarice,

que usamos de empréstimos,ela é dona de tudo.


Clarice não foi um lugar -comum,

carteira de identidade,retrato.

De Chirico a pintou?Pois sim.

O mais puro retrato de Clarice

só se pode encontrá-lo atrás da nuvem

que o avião cortou,não se percebe mais.


De Clarice guardamos gestos.Gestos,

tentativas de Clarice sair de Clarice

para ser igual a nós todos

em cortesia,cuidados materiais.

Clarice não saiu,mesmo sorrindo.

Dentro dela

o que havia de salões,de escadarias,

de tetos fosforecentes e longas estepes

e zimbórios e pontes do Recife em bruma envoltas

formava um país,o país onde Clarice

vivia,só e ardente,construindo fábulas.


Não podíamos reter Clarice em nosso chão

salpicado de compromissos.Os papéis,

os cumprimentos falavam em agora

em edições,possíveis coquetéis

à beira do abismo.

Levitando acima do abismo Clarice riscava

em sulco rubro e cinza no ar e fascinava-nos.

Fascinava-nos apenas.

Deixamos para compreendê-la mais tarde.

Mais tarde um dia...saberemos amar Clarice.

(Carlos Drummond de Andrade)

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