Para Ver-"Anjos na América" de Mike Nichols(2003)


A década de 80,especialmente para quem a viveu na juventude foi sem dúvida uma época mágica,nostalgias à parte;especialmente no Brasil redemocratizado,que vivia uma abertura política e de costumes nunca antes vistas.
Mas em meio a liberdades de expressão nem sequer imaginadas por muitos no começo do século XX,uma  ameaça ,a princípio incerta,desconhecida,mas que tornou-se uma das doenças mais mortíferas(no ocidente até o advento dos anti-retrovirais) da história da humanidade-a AIDS.

"Angels in America",nome original da série da HBO,é a adaptação da maravilhosa peça do dramaturgo americano Tony Kushner(1956),vencedora do prêmio Pulitzer de melhor texto teatral.Kushner,segundo suas próprias palavras,quis dar seu testemunho sobre a época sombria do advento da AIDS e do governo de extrema direita de Ronald Reagan nos Estados Unidos,que combinados deram início a uma das piores etapas da história dos direitos civis americanos.
Muito pouco se sabia sobre a AIDS até 1986/87 e junto com o desconhecimento,crescia o preconceito.O sofrimento das primeiras vítimas da epidemia,a grande maioria homens gays,dificilmente será esquecido.especialmente pelas comunidades de Nova York,San Francisco e Los Angeles,as mais afetadas.Nas palavras de escritoras como Susan Sontag e Camille Paglia,a morte teve uma colheita inédita de grandes escritores,dançarinos-coreógrafos,atores,pintores,cantores,uma gama enorme do pessoal das artes-cinema-teatro.Em uma entrevista Sontag conta do horror que se apossou de Nova York por volta de 1985,com as pessoas perdendo amigos,tendo notícia que outros estavam irremediavelmente doentes(não havia,então,nenhuma droga).
Em "Angels in America",Tony Kushner fala do desespero das vítimas e de seus entes queridos,mas também dá esperança na magnífica cena final(e dentro do simbolismo dos anjos na peça).
Com roteiro escrito pelo próprio Kushner,a série,como a peça se divide em duas partes-"O Milênio se aproxima(Millenium approaches)e "Peresttroika"-nomes que nos remetem bem ao espírito da época.Essas partes são divididas em capítulos.
A trama é relativamente simples-Deus abandonou o céu.Na Nova York de 1985,Prior(Justin Kirk) recebe a notícia que está com AIDS,seu companheiro de 4 anos,Lou(Ben Shenckman) incapaz de lidar com a doença o abandona(algo que sempre aconteceu com portadores de HIV).Enquanto a doença avança,Prior sofre na solidão,contando quase só com seu amigo do peito,o enfermeiro Belize(Jeffrey Wright,em interpretação estupenda) e com a enfermeira Emily(Emma Thompson).Enquanto isso,o advogado homofóbico e gay enrustido(sim,eles existem),Roy Cohn(Al Pacino,impressionante)um personagem real,se interessa pelo jovem e bonito advogado Joe Pitt(Patrick Wilson),também enrustido e casado com a problemática Harper(Mary-Louise Parker-magnífica),sexualmente insatisfeita e infeliz.Prior recebe a vista do anjo da América(Emma Thompson),que o convida a ser uma espécie de profeta .A trama vem e vai ,não seguindo um ritmo linear,até  o maravilhoso final(uma das mais belas cenas do teatro contemporâneo na minha opinião).Os anjos,os mensageiros de Deus cansado da maldade e das loucuras dos seres humanos,teem uma parte pivotal na série.A espécie humana não está perdida,é possível se salvar,pela piedade e pelo amor.
Fábula feérica humanista,"Angels in America",foi uma das séries mais vistas na história da televisão americana,e foi aclamada entusiasticamente pela crítica.No impressionante elenco com Al Pacino,Jeffrey Wright,Justin Kirk,Mary-Louise Parker,Patrick Wilson,Emma Thompson,Ben Shenckman,a estupenda Meryl Streep,que mais uma vez confirma porque é a maior atriz viva,e nos brinda com uma interpretação antológica,comovente,sublime.A série venceu 5 globos de ouro e 11 emmys(batendo o recorde do prêmio),incluindo melhor ator(Al Pacino),melhor atriz(Meryl Streep),melhor ator coadjuvante(Jeffrey Wright),melhor atriz coadjuvante(Mary-Louise Parker),melhor diretor(Mike Nichols) e melhor série.Destaque também para a abertura,uma das mais bonitas de todos os tempos.
Uma ode à compaixão humana,ao amor que nos redime do nada,à salvação do ser humano pela piedade e pela solidariedade.Uma obra-prima de nosso tempo,inquestionavelmente.






A famosa cena final

Eu levo o seu coração comigo-e.e.cummings(1894-1962)

eu levo o seu coração comigo (eu o levo no
meu coração) eu nunca estou sem ele (a qualquer lugar
que eu vá, meu bem, e o que que quer que seja feito
por mim somente é o que você faria, minha querida)

                    tenho medo
que a minha sina (pois você é a minha sina, minha doçura) eu não quero
nenhum mundo (pois bonita você é meu mundo, minha verdade)
e é você que é o que quer que seja o que a lua signifique
e você é qualquer coisa que um sol vai sempre cantar

aqui está o mais profundo segredo que ninguém sabe
(aqui é a raiz da raiz e o botão do botão
e o céu do céu de uma árvore chamada vida, que cresce
mais alto do que a alma possa esperar ou a mente possa esconder)
e isso é a maravilha que está mantendo as estrelas distantes

eu levo o seu coração ( eu o levo no meu coração)



Tradução de Regina Werneck


Blogagem Coletiva-Como você escolhe seus amigos?



A Mylla propôs essa blogagem  em homenagem aos seis meses de seu blog Idéias de Milene,e confesso que o assunto me intrigou.Desde muito cedo,os laços de amizade se estabelecem em função de afinidades,de gostos em comum,de reciprocidades.Não há como não se lembrar das tardes na escola,das excursões,dos brinquedos.
Mas a infância é um período em que relativamente somos muito protegidos pela família e,acredito,as amizades não assumem o caráter mais profundo que imprimos a elas a partir da adolescência.Aos 15 anos fui estudar fora da minha cidade,por escolha própria e começou aí um dos mais fantásticos períodos da minha vida.Longe de casa,adolescente,a solidão,no começo,me esmagava e me punha para baixo.Mas foi nessa época que descobri o poder real e imenso das amizades fiéis,do coração.Dessa época,há quase 30 anos,tenho 2 grandes amigos-irmãos,do coração e da alma.Acredito que adolescentes,imprimos muito do idealismo próprio da adolescência ás amizades,o que está longe de ser algo negativo.
A faculdade foi um tempo em que descobri que além das afinidades a amizade pode existir também dentro das diferenças,ás vezes até aparentemente inconciliáveis,de opinião.Se ser amigo fosse concordar com tudo que o outro pensa,certamente não teríamos nenhuma amizade aí.Da faculdade trouxe outro grupo inesquecível de amigos,dos quais só posso me orgulhar.
E a vida ,com suas tantas surpresas hora desagradáveis,e muitas vezes maravilhosas,nos traz,de repente,pessoas,que nos transformam de muitas formas,mesmo quando não percebemos.Acredito firmemente,que não escolhemos as amizades,que como tantos outros amores,nos vem do ocaso deslumbrante que é o próprio viver.Os amigos são os grandes hóspedes de nossos corações de nossas almas.
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Leitura Coletiva-"Orgulho e Preconceito"-de Jane Austen.



Jane Austen, grande escritora inglesa, escreveu  romances como Razão e sensibilidadeEmmaPersuasão e Orgulho e preconceito. Perfeita na construção de seus personagens, Jane retratou a sociedade de sua época maravilhosamente. Lendo Austen é possível compreender cada detalhe da vida da época. Você já leu os textos de Jane Austen? O Fio de Ariadne e o Minha literatura agora convidam para uma leitura coletiva de Orgulho e preconceito, romance que conta a história de Elizabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy. Assim que formarmos um grupo com seis bons leitores  que resolvem topar ler o romance em até 3 semanas, divulgamos as datas de publicação das resenhas.O Minha Literatura Agora sorteará,através do site  random.org uma obra de Jane Austen entre os participantes.


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Para Ler -"Viagem ao centro da Terra" de Júlio Verne(1828-1905)


Júlio Verne(1828-1905),não é um luminar da literatura;não é estudado nas faculdades de letras (embora de certa forma,devesse ser);não consta dos cânones literários,não é visto como um autor revolucionário(embora devesse);não é nem mesmo visto por alguns críticos como um grande escritor(embora eles estejam redondamente enganados).Júlio Verne é seguramente ,um dos maiores escritores do que se convencionou chamar de"fantasia"(o que de alguma forma rotula o trabalho de um escritor).O advogado que largou tudo para ser escritor e segundo ele mesmo "colocar tudo que brotava de sua imaginação no papel"(e ainda bem que colocou).Homem curiosíssimo,lia tudo,possuia uma curiosidade intelectual dessas insaciáveis,que ia da literatura latina aos últimos lançamentos da literatura de seu tempo.Muito longe de um certo estereótipo do escritor de ficção científica,Verne estava bastante ligado aos acontecimentos políticos e sociais de seu tempo.
Sua imaginação era revolucionária e seu domínio da narrativa,exímio.Quem nunca se deliciou com "Cinco semanas em um balão","Vinte Mil Léguas Submarinas",o fabuloso "A Volta ao Mundo em Oitenta Dias",o impressionante"Da Terra à Lua","A Ilha Misteriosa",e sua obra-prima-"Viagem ao Centro da Terra",para mim,uma obra prima,uma obra que cumpre a função máxima da literatura-recriar(ou criar)um mundo,nos fazer as perguntas básicas sobre o nosso destino e o destino de nosso planeta,e nos divertir,nos empolgar,e nos fazer pensar.
As aventuras do Professor Lindenbrock,de seu sobrinho Axel e do guia Hans que através da cratera do vulcão extinto Sneffels conseguem chegar ao centro da terra,estão entre as mais exuberantes e imaginativas de todos os tempos.Julio Verne põe sua imaginação aqui,a serviço do maravilhoso e do imprevisto.Confesso que já o li várias vezes(é,inclusive um dos meus remédios contra o estresse),sendo que terminei a última noite passada.O frescor ,o prazer de ler que emana desse livro nunca morrem-muito devido ao imenso talento do autor.As descrições das paisagens do centro da terra-o oceano,as árvores,o efeito foto-elétrico das luzes abismais em suas tonalidades de cor,os animais antidiluvianos,as cores de cores que Verne usa,são primorosas,coisas que só um grande mestre seria capaz de fazer.
Um admirável mundo novo,com todas as suas possibilidades foi o que Júlio Verne concebeu na "Viagem ao Centro da Terra".O final é de uma maestria rara,que empolga e nos leva a devorar o livro.Verne nos prova que nem todos os escritores devem escrever como Proust para serem bons.Sua imaginação prodigiosa e sua excelência narrativa nos provam que ele ,além de um mero escritor de fantasia,foi um mestre indiscutível, um vidente das possibilidades científicas que o século XX comprovou e o século XXI vai comprovando,além de ter falado de consciência ecológica há mais de um século.
Releiam Verne,o prazer é imenso.Um mestre entre os mestres do melhor da ficção científica.

"Viagem ao Centro da Terra"(texto integral)-Editora L&PM(L&PM Pocket)-2006

La Mamma Morta -Maria Callas(da ópera Andrea Chenier de Umberto Giordano)



La mamma morta m'hanno
alla porta della stanza mia;
Moriva e mi salvava!
poi a notte alta
io con Bersi errava,
quando ad un tratto
un livido bagliore guizza
e rischiara innanzi a' passi miei
la cupa via!
Guardo!
Bruciava il loco di mia culla!
Cosi fui sola!
E intorno il nulla!
Fame e miseria!
Il bisogno, il periglio!
Caddi malata,
e Bersi, buona e pura,
di sua bellezza ha fatto un mercato,
un contratto per me!
Porto sventura a chi bene mi vuole!
Fu in quel dolore
che a me venne l'amor!
Voce piena d'armonia e dice:
"Vivi ancora! Io son la vita!
Ne' miei occhi e il tuo cielo!
Tu non sei sola!
Le lacrime tue io le raccolgo!
Io sto sul tuo cammino e ti sorreggo!
Sorridi e spera! Io son l'amore!
Tutto intorno e sangue e fango?
Io son divino! Io son l'oblio!
Io sono il dio che sovra il mondo
scendo da l'empireo, fa della terra
un ciel! Ah!
Io son l'amore, io son l'amor, l'amor"
E l'angelo si accosta, bacia,
e vi bacia la morte!
Corpo di moribonda e il corpo mio.
Prendilo dunque.
Io son gia morta cosa!

Essa ária da ópera Andrea Chenier,popularizada no ótimo filme Filadélfia,mostra Maria Callas(1923-1977)no auge de sua extraordinária potência vocal.Mais do que uma soprano,Maria Callas é sem dúvida,a maior cantora lírica de todos os tempos,cujas interpretações levavam seus fãs ao delírio(como na apresentação de Tosca no Covent Garden em 1954,em que foi aplaudida 23 vezes em cena e no final teve uma ovação  de 25 minutos).Callas aliou ao canto lírico seus dons de representação assim como a técnica vocal impecável e o absoluto domínio do palco.Foi (e é)sua voz que porém ,faz com que milhões de pessoas a venerem em todo o mundo e leve a afirmações entusiastas como a de Paulo Francis-"Deve ser o que Ulisses ouviu,amarrado ao mastro,quando as sereias cantaram.É o que me lembra a voz de Callas no seu apogeu"(Waal-O Diário da corte de Paulo Francis-pag. 41).Uma voz que hoje talvez seja impossível de surgir uma igual ou parecida para nos emocionar no fundo do coração e da alma.


Enquanto isso no mundo "globalizado"...



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Para ver-"Carrington" de Christopher Hampton(1995)


Quando em 1905,Thoby,o irmão mais velho de Virginia Woolf,levou seus amigos da Universidade de Cambridge para jantar na casa de suas irmãs(Virginia e Vanessa)em Londres,nunca imaginou que nasceria ali o famoso Grupo de Bloomsbury (o bairro londrino onde se localiza o Museu Britânico).Entre esses amigos,se destacava pelo brilhantismo intelectual e pela excentricidade o futuro escritor Lytton Strachey(1880-1932).
O Grupo de Bloomsbury se destacou pelo talento de seus membros,por sua estatura intelectual,pela amplitude de horizontes e visão.Dele emergiram a grande Virginia Woolf,o economista John Maynard Keynes,Lytton Strachey,os pintores Vanessa Bell e Duncan Grant,os críticos de arte Clive Bell e Roger Fry,entre outros.
O que o grupo de Percy e Mary Shelley e Lorde Byron haviam sido no começo do século XIX para a Inglaterra,o Grupo de Bloomsbury foi no início do século XX,ou seja:a vanguarda intelectual,artística,comportamental e sexual de sua época.Paulo Francis diz que até hoje causariam espanto.Eram quase todos bissexuais,quase todos casados,isso em uma época em que o processo de Oscar Wilde estava ainda recente e qualquer tipo de comportamento alternativo era tido como abominação.Virginia woolf casou-se com o editor e escritor Leonard Woolf,e teve casos tórridos com mulheres,especialmente com a aristocrática Vita Sackville-West(o modelo de "Orlando');sua irmã Vanessa,casada com o crítico Clive Bell(com quem teve 2 filhos),viveu depois com o bem resolvido pintor gay Duncan Grant(que sempre teve outros relacionamentos com homens)e tiveram uma filha,Angelica.Mas a história mais diferente,mais original,aconteceu entre Lytton Strachey e a pintora Dora Carrington.Os dois se conheceram na célebre casa de campo de Vanessa Bell e Duncan Grant,Charleston,em 1915.Carrington(como gostava de ser chamada),heterosexual convicta,apaixonou-se louca e irremediavelmente por Strachey,iniciando um relacionamento que se estenderia por 17 anos,e só terminaria com a morte de ambos(com dois meses de diferença)em 1932.Carrington casou-se,teve casos;assim como Lytton teve vários relacionamentos mais ou menos duradouros.Mas sempre moraram juntos,amaram-se profundamente,num relacionamento que não incluia relações sexuais.Um amor grande e louco,frente à hiper-hipócrita sociedade britânica da época,que obviamente não conseguia entende-lo.
O diretor inglês Christopher Hampton,também diretor dos maravilhosos"Ligações Perigosas"e "Desejo e Reparação",constroi Carrington com o que realmente foi a sua história-o encontro de um grande amor em circunstâncias insólitas e a decisão firme de levá-lo até o fim,custasse o que custasse.Para que seu filme desse a exata medida das personagens,Hampton precisava de atores à altura.Jonathan Pryce faz ,apesar do lugar comum,um Lytton Strachey "mediúnico",com todo o trabalho corporal de composição baseado numa pessoa real,numa interpretação impressionante que lhe valeu o prêmio de melhor ator em Cannes.Emma Thompson faz uma Carrington atormentada e doce,resoluta e introspectiva,dando como sempre,um show.
"Carrington" é uma obra que nos faz pensar que as coisas tidas como "as normais"na verdade,raramente existem,e o que o sentimento de um ser humano pelo outro é muito mais forte do que às vezes imaginamos,e que o amor toma muitas formas.Um exercício de humanismo em nossa era do cinismo terminal.

Poema Visual



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Para ler-"Cartas" -de Caio Fernando Abreu


            Caio Fernando Abreu(1948-1996),é para mim,e digo isso sem sombra de dúvida,um dos mais importantes escritores brasileiros.Desde suas primeiras obras no final dos anos 60,começo dos anos 70,sua voz se fez ouvir muito claramente em meio a uma literatura brasileira muitas vezes dominada por um certo ranço preciosista,por um planfetarismo infantil ou pelo psicologismo fácil.No que pese o preconceito homofóbico de uma certa crítica rasteira(que no entanto se acha muito moderna e cosmopolita),Caio soube escrever uma obra fiel à sua própria visão de mundo,coerente com seu sofrimento de ser humano,com suas experiências de vida e seu mundo interior,e porque não,com sua sexualidade.Legítimo herdeiro do"desbunde' dos anos 60/70,não se converteu,em momento algum em"carpideira da história",não se entregou à ressaca do Flower Power na forma adotada por tantos-um neoconservadorismo sem reflexão objetiva,que não soube,como bem diz Camille Paglia,trazer para a realidade palpável o legado das utopias libertárias.
Caio foi um dos últimos grande escritores de cartas,esse luxo da nossa época do e-mail e do twitter.Escreveu milhares durante sua vida,e aos mais variados destinatários,famosos e anônimos,amigos(as) do peito,conhecidos e quase desconhecidos.O crítico Ítalo Moriconi organizou essa coletânea de Cartas para a Editora Aeroplano em 2002,reunindo uma seleção de cartas que vão do adolescente de 1965 até seus últimos dias em 1995/1996.Dividido em 2 partes-"Todas as horas do Fim(1980-1996) e "Começo-O Escritor(1965-1979),as cartas acompanham todas as fases da vida de Caio,com a dificuldade de ser escritor num país ainda tão refratário à cultura como o Brasil,seus sofrimentos íntimos,sendo ele uma pessoa sensível,em meio à desesperança contemporânea e a superficialidade e futilidade de tantas pessoas.Essas cartas são para ler e de certa forma,viver e sentir com ele,são uma coletânea para se guardar no coração-a vida de um ser humano com todos seus altos e baixos,sua ânsia de amor e reconhecimento,que não são a de todos nós?
Caio teve centenas de destinatários.Destaco aqui sua amiga Jacqueline Cantore,para quem escrevia longas cartas,ás vezes com dezenas de páginas;Luciano Alabarse;Luiz Arthur Nunes,o ator Marcos Breda,Maria Adelaide Amaral(que o homenageou em sua minissérie "Queridos amigos");a artista plástica Maria Lídia Magliani;a escritora Lucienne Samôr,e muitos outros.Nas cartas fala da vida,dos amores curtidos e perdidos,da imprevisibilidade de nosso país sempre do futuro,do caos da vida urbana,da alegria de viver,do ofício de escritor,de fofoca,de tudo,praticamente.Destaco aqui alguns trechos que dão uma idéia dessa obra que acho monumental:
(...)tenho tentado aprender a ser humilde.A engolir os nãos que a vida te enfia goela abaixo.A lamber o chão dos palácios.A me sentir desprezado-com-um-cão,e tudo bem,acordar,escovar os dentes,tomar café e continuar.Não há de ser em vão(...)-carta a Jacqueline Cantore(18/04/1985)
(...)nossa necessidade fresca e neurótica de elaborar sofrimentos e rejeições e amarguras e pequenos melodramas cotidianos para depois sentar Atormentado e Solitário para escrever Belos Textos literários.-carta a Sérgio Keuchgerian (10/08/1985)
(...)Me veio vindo aos pouquinhos,não sei em de onde,um amor tão desesperado pelo Brasil.Desesperado é esse o adjetivo.A um ponto que,com aquele 'accent' de João Gilberto,a música que mais cantei aqui(na Inglaterra)-baixinho,só para mim mesmo-nesse tempo todo foi "isso aqui ôôô,é um pouquinho de Brasil iáiá",quando via algo ou alguma coisa que me lembrava o Brasil-carta a Guilherme de Almeida Prado(09/03/1991)
(...)Mas é difícil dizer às pessoas com menos de 30 anos que o tempo realmente passa.-carta a Maria Lídia Magliani(22/07/1991)
(...)Mas o que ia dizendo-não se enlouquece quando se tem um tanque cheio de roupa suja pra dar conta.Não é possível a gente se dar a esse luxo.-carta a Maria Lídia Magliani(10/09/1991)
Bem,o livro tem 532 páginas,e segundo Ítalo Moriconi,é só uma'pequena' amostra das cartas que Caio escreveu.Seu amor à vida,seus percalços amorosos,o ser escritor enquanto vocação e meta de vida,seu culto apaixonado a Clarice Lispector,enfim seu desnudamento como ser humano,são inesquecíveis,sedutores e há ainda,o registro histórico de toda uma época do Brasil e da vida intelectual brasileira.
Caio nos honra com sua presença de coragem moral e grandeza intelectual como poucas figuras,tidas como medalhões inquestionáveis,fazem.Salve Caio.

Visões de André Kertész(1894-1985)





André Kertész,nascido na Hungria em 1894,é hoje considerado um dos maiores fotógrafos de todos os tempos.Kértesz inaugurou o que podemos chamar de a fotografia como narrativa;a foto que conta uma história a partir de seus elementos.Kértesz fotografou o que é chamado de"pessoas comuns",pessoas na rua,em situações do dia a dia(especialmente em sua fase parisiense).Sua fase nova iorquina se situa dentro de seu evidente fascínio pela monstruosidade de concreto e vidro da cidade,e a interação das pessoas nesse espaço.Poeta das lentes,escritor dos gestos e momentos efêmeros captados para a eternidade,Kértesz hoje faz chegar a nós sua visão personalíssima do mundo,sua leitura fabulosa do nosso belo e amargo mundo.

MAR PORTUGUÊS-Fernando Pessoa(1888-1935)



 MAR PORTUGUÊS 
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Para mim,sem sombra de dúvida,um dos mais belos poemas da língua portuguesa,de uma beleza dolorida e perfeita.Fernando Pessoa,mais um dos grandes presentes de Portugal para o mundo.

"Shine On You Crazy Diamond"(Homenagem a Syd Barret)


Shine On You Crazy Diamond

Remember when you were young, you shone like the sun.
Shine on you crazy diamond.
Now there's a look in your eyes, like black holes in the sky.
Shine on you crazy diamond.
You were caught on the crossfire of childhood and stardom, blown on the steel breeze.
Come on you target for faraway laughter, come on you stranger, you legend, you martyr,
and shine!
You reached for the secret too soon, you cried for the moon.
Shine on you crazy diamond.
Threatened by shadows at night, and exposed in the light.
Shine on you crazy diamond.
Well you wore out your welcome with random precision, rode on the steel breeze.
Come on you raver, you seer of visions, come on you painter, you piper, you prisoner,
and shine!
Nobody knows where you are, how near or how far.
Shine on you crazy diamond.
Pile on many more layers and I'll be joining you there.
Shine on you crazy diamond.
And we'll bask in the shadow of yesterday's triumph, and sail on the steel breeze.
Come on you boy child, you winner and loser, come on you miner for truth and delusion,
and shine!
tradução aqui e imagem daqui

  Syd Barret(1946-2006),o lendário guitarrista e letrista,um dos fundadores do Pink Floyd em 1965,foi uma das figuras mais brilhantes e trágicas de sua geração.Rebelde à moda de Rimbaud,viveu à risca o tríptico sexo,drogas e rock'n'roll.A partir de 1967,seu assustador consumo de LSD e haxixe,o levou a desenvolver a doença mental que já se manifestava intermitentemente ao longo dos anos.O álbum "A saucerful  of Secrets" foi o último em que tomou parte.Uma da 'vítimas' mais famosas dos excessos psicodélicos dos anos 60,Sid influenciou,apesar do pouquíssimo tempo em que passou no Pink Floyd,uma imensa quantidade de guitarristas.Sua bela figura de 'gênio torto' está hoje congelada no tempo,numa ode à genialidade e num lamento pelo infortúnio precoce.

Poema Visual(grafite anônimo)



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Para ler-"O Perfume" de Patrick Süskind

            "No século XVIII viveu na França um homem que pertenceu à galeria das mais geniais e detestáveis figuras daquele século nada pobre em figuras geniais e detestáveis.A sua história é contada aqui.Ele se chamava Jean-Baptiste Grenouille e se,ao contrário do nome de outros geniais monstros como,digamos,Sade,Saint-Just,Fouché,Bonaparte etc.;o seu nome caiu hoje no esquecimento,isto certamente não ocorreu porque Grenouille tenha ficado atrás desses homens das trevas mais famosos em termos de arrogância,desprezo à raça humana,imoralidade,ou seja,em impiedade,mas porque o seu gênio e a sua única ambição se concentravam numa área que não deixa rastros na história:o fugaz reino dos perfumes."
              Assim começa "O Perfume-História de um assassino" do alemão Patrick Süskind(1949),publicado em 1985.A concepção do livro é literalmente fantástica-a história de um homem capaz de guardar em sua memória olfativa todo e qualquer cheiro que tivesse aspirado uma vez que fosse.Como diz Süskind no livro,os habitantes do ocidente hoje,dificilmemte poderiam entender a extensão do mau cheiro reinante em uma época como o século XVIII.A assepsia de qualquer espécie era praticamente desconhecida,e o mau cheiro reinava absoluto.Nesse reino desagradável da sujeira e da eterna fedentina,Grenouille tenta chegar á fragrância ideal,que o tornaria irresistível,amado até à loucura.Porque nascido em um mercado de peixes próximo ao nauseabundo Cemetiére des Inocents em Paris,filho de uma mãe totalmente indiferente á sua sorte e que certamente,o o teria deixado morrer ali,em meio às carcaças dos peixes retalhados,Grenouille muito cedo percebeu que ninguém o amaria por si só;a ele,feio,corcunda,apagado.Só o perfume supremo o salvaria,o conduziria ao caminho doce do amor,da adoração.
             Asssitimos então às peripécias de Grenouille,de seu nascimento espúrio,passando por seus empregos (bem no espírito da época-em que era tratado como um escravo),até sua descoberta do perfume perfeito e suas nefastas consequências.
                      Sublime parábola sobre a busca desenfreada de uma felicidade que muitos  pensamos ser e estar exterior a nós,"O Perfume"nos revela como a busca da perfeição pode encobrir meios e fins muito mais imorais(e mais ainda,amorais)que pensamos ou queremos.Alegoria política do mau cheiro eterno dessa mesma política,"O Perfume"não por acaso,se passa na época em que Voltaire e Rousseau elaboraram sua filosofia da liberdade,do questionamento da opressão política.O contraste é óbvio entre sujo-limpo,assim como entre loucura-normatização.Romance psicológico,obra erudita(à moda de Umberto Eco),tratado sobre a crueldade ou a intolerância,esse é um livro de reais e múltiplas leituras,que nos causa,porque não um "estranho'prazer em ler.Grande obra.
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